Rios de lama e cones vulcânicos: um exemplo mais de iliteracia científica

De um modo geral, a sociedade considera a ignorância sobre a história de Portugal, por exemplo, muito mais grave do que o desconhecimento de conceitos básicos de geologia.

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Muito se tem discutido sobre o flagelo das notícias falsas (vulgo, fake news) e de como conseguem hoje em dia propagar-se instantaneamente, em grande parte devido à partilha nas redes sociais. Os órgãos de comunicação social não são imunes a este estado de coisas, uma vez que a “urgência” e o imediato que caracteriza o mundo atual os leva a uma necessidade de constante atualização. Desejavelmente, a obtenção e divulgação de informação implicaria uma equipa de jornalistas especializados em diversas áreas temáticas (política, desporto, ciência, etc.) que confirmasse a informação obtida e fizesse o respetivo tratamento jornalístico. Infelizmente, até pelas recentes revindicações destes profissionais, sabemos que não é isso que hoje acontece.

Vem isto a propósito de uma notícia que a agência Lusa divulgou a 12 de maio e que foi rápida e integralmente reproduzida nos websites de muitos meios de comunicação social, como o PÚBLICO [entretanto, a notícia foi corrigida], o Expresso e a RTP, com o título “Pelo menos 12 mortos em inundações repentinas na Indonésia” e com o subtítulo “Pelo menos 12 pessoas morreram e quatro estão desaparecidas na sequência de inundações repentinas e de correntes de lava fria no oeste da Indonésia”.

Sendo eu geólogo e professor, fiquei obviamente curioso com este fenómeno natural – correntes de lava fria – já que, como todos sabemos (ou deveríamos saber?...), lava é, por definição, um material quente. Mais à frente na notícia somos então esclarecidos sobre as particularidades desse fenómeno: “A lava fria é o magma formado a partir dos vários materiais que constituem as paredes de um vulcão: cinzas, areia e rochas. Sob o efeito da chuva, estes materiais podem misturar-se e escorrer pela cratera.”

Grande parte dos meus colegas docentes, de qualquer nível de ensino, conhece bem este tipo de definições apresentadas por alunos, que, não sabendo a resposta certa, decidem usar palavras que escutaram durante as aulas para construir uma frase “bonita”, mas que não faz qualquer sentido.

Mas, afinal, o que se passou na Indonésia e que, infelizmente, provocou vítimas humanas? Já todos observámos, nem que seja na televisão, erupções vulcânicas de vários tipos: umas vezes dando origem a longos rios de lava que escorrem a partir de centros eruptivos, outras gerando cones vulcânicos com centenas de metros de altura formados por materiais vulcânicos que se vão sobrepondo com o decorrer de sucessivas erupções, mesmo que espaçadas ao longo de séculos ou milénios.

Em regiões de elevada pluviosidade e em vulcões localizados sob uma camada significativa de gelo e neve, em particular após erupções recentes, quando os materiais vulcânicos estão ainda pouco consolidados, podem gerar-se verdadeiras enxurradas com os fragmentos de rochas vulcânicas de várias dimensões e cinzas que constituem as vertentes dos cones vulcânicos, misturados com a água. Estes “rios de lama” descem a grande velocidade pelas vertentes do cone vulcânico – podem atingir os 100 quilómetros por hora – e espraiam-se nas zonas mais aplanadas junto à sua base.

O termo técnico internacional para designar este fenómeno é lahar, uma palavra com origem na ilha de Java (Indonésia) e que reflete a frequência deste fenómeno nessa região do globo, não existindo uma tradução para a língua portuguesa. Os lahars estão entre os eventos naturais em zonas vulcânicas que mais vítimas causam e maior destruição material provocam.

De má memória, registe-se o dia 13 de novembro de 1985, quando, por volta das 21 horas locais, o vulcão Nevado del Ruiz na Colômbia entrou em erupção e, cerca três horas depois, um lahar arrasou diversas comunidades existentes na base do vulcão, nomeadamente a cidade de Armero, tendo perecido mais de 23 mil pessoas.

De um modo geral, a sociedade considera a ignorância sobre a história de Portugal, por exemplo, muito mais grave do que o desconhecimento de conceitos básicos de geologia. Todavia, seria desejável que os atuais 12 anos de escolaridade obrigatória dotassem todos os cidadãos com os conhecimentos mínimos de ciência que lhes permitissem detetar que a explicação apresentada pela comunicação social acerca do fenómeno geológico que ocorreu na Indonésia não faz o mínimo sentido.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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