“Não podemos ser apenas o país do vinho bom, bonito e barato”
Juntámos vários produtores que lançaram vinhos acima dos 200€ a garrafa e um enólogo desalinhado nesta estratégia dos vinhos ultra-premium. E deixámos a conversa rolar.
Antes de Cláudio Martins ter, a partir de Londres, aterrado na pátria com algum estrondo, tínhamos uns três tintos icónicos a preços de gente rica (Barca Velha, Pêra Manca e Quinta do Ribeirinho Pé Franco). Três anos depois do lançamento do Júpiter, em 2021 e a 1000€, os dedos das duas mãos já não chegam para se contar os vinhos acima de 100 euros a garrafa. Aliás, nas provas de apresentação de vinhos, os jornalistas costumam perguntar em jeito de provocação ao produtor presente se não se arranja nada acima de 100 euros.
Quando apareceu o Júpiter, o vocabulário de insultos dirigidos a Cláudios Martins foi rico. Mas, hoje, a poeira assentou. É certo que há quem considere insultuoso pagar-se 100€ por uma garrafa (ou até menos), mas, aos poucos, parece que os consumidores percebem que o facto de haver por cá – no tal país com muita história e muita casta – vinhos a preços estratosféricos, não significa que nos vá faltar vinho barato para o dia-a-dia. De resto, nunca se bebeu vinho tão bom e tão barato em Portugal, coisa que é bom para consumidores e grupos de distribuição, mas péssimo para pequenos e médios produtores que fazem vinhos com denominação de origem e que têm de vender vinho como quem vende areia no Sara.
Face ao que está a acontecer um pouco por todo o país com os preços elevados colocam-se várias questões: estaremos perante uma moda passageira, uma tendência consolidada ou um movimento que já devia ter começado há várias décadas? Podem estes vinhos com preços elevados reposicionar a imagem de Portugal? Estarão estes vinhos destinados aos mercados externos ou haverá procura interna suficiente? E, ainda nesta matéria, as garrafas vendem-se ou ficam a ganhar pó nos armazéns ou nas prateleiras das garrafeiras?
Por estas e por outras, convidámos vários produtores que recentemente lançaram vinhos acima dos 200 euros a garrafa para um debate aberto num hotel de Lisboa (na realidade, vinhos entre 230 e os 3800€). A saber, Andrés Herrera (Torero Wines), António Boal (Segredo 6), Luís Leocádio (Titan), Luís Serrano Mira (Herdade das Servas), Pedro Ribeiro e Cláudio Martins (Júpiter), Paulo Nunes (Casa da Passarella), Pedro Lufinha (Quinta da Alorna) e Susana Esteban (Vinhos Susana Esteban). Para fazer contraditório, o enólogo e dirigente Jaime Quendera, que trouxe para a prova um Casa Ermelinda de Freitas, Moscatel Roxo 2010. Em representação de todas as comissões vitivinícolas regionais, Francisco Toscano Rico.
A posição de Cláudio Martins (Júpiter) tem sido a mesma desde que arrancou a colecção Wines from Another World, que já vai no terceiro vinho (ou terceiro planeta). “É absurdo que Portugal, com a história que tem, seja um país sem vinhos para competir no segmento ultra-premium. E é absurdo que, por puro preconceito, recusemos ter vinhos para clientes que compram por causa do preço, do rótulo ou da notoriedade da marca. Já trabalhei com clientes de todo o mundo que não compram vinhos portugueses pura e simplesmente porque são baratos. Acho que já é altura de aceitarmos que não podemos ser apenas o país dos vinhos bons, bonitos e baratos”.
Perante esta tese, Francisco Toscano Rico, presidente da CVR Lisboa e presidente da Andovi, reconhece a importância destes vinhos para posicionar Portugal nos mercados externos, mas defendeu, perante alguns dos produtores presentes que referiram que os seus vinhos eram edições não repetíveis, a necessidade de Portugal produzir tais vinhos “com regularidade, consistência, em maior quantidade e não na lógica do one shot”. Se tais vinhos levantam ou não polémica, isso não o preocupa. “O que eu gostava era que estes vinhos tivessem uma identidade regional vincada e que não fossem apenas uma moda”.
O conceito de moda não foi bem recebido por Paulo Nunes, que considerou que “estes vinhos são tudo menos moda”. Francisco Toscano ainda reformulou o conceito (de “moda” para “tendência”), mas o enólogo da Passarella e do Segredo 6 entende que os vinhos e os preços em causa “só pecam por chegarem tarde”. Mais. “Estes vinhos são quase todos feitos a partir de vinhas velhas, vinhas que noutros tempos davam uvas que iam para produções indiferenciadas e que eu gosto de chamar de vinhos croquete. Hoje, felizmente, sabemos olhar para elas e retirar-lhes as peças mais nobres (bife do lombo ou da vazia). Não há aqui moda alguma. O que existe, felizmente, é o reconhecimento da riqueza e da capacidade diferenciadora destas vinhas velhas com produções ínfimas e que são património único e mundial. Ora, se isto é assim, se toda a gente reconhece o valor destas vinhas e se em todo o mundo aquilo que é raro tem de ter um valor elevado, por que razão não fazemos como os outros?”
Nesta linha de raciocínio, Andrés Herrera acrescentou um dado interessante sobre a vinha que dá origem ao seu Maese (em português diríamos maestro). “Este vinho nasce de uma vinha do meu ex-sogro. Quando cuidava dela e vendia as uvas, não tinha um euro de lucro porque a vinha era velha, porque produzia pouco e porque as uvas eram pagas ao mesmo preço de uma vinha nova. Uma irracionalidade chocante.” O enólogo que apresenta a garrafa mais cara neste painel (3800€) não tem problema algum em assumir que o vinho, “à parte de ser um elemento da nossa cultura, é também uma experiência”. “E se há gente que paga fortunas por experiências de diferentes origens e formatos, por que razão se estranha que alguém pague 1000€, 5000€, 10.000€ ou mais por uma garrafa vinho?”
Susana Esteban corre na mesma pista ao destacar a importância de se valorizar as vinhas velhas. “Sou consultora em projectos de diferentes regiões, onde tenho de fazer vinhos que competem no mercado pela lógica do preço, mas aqui, em Portalegre, com estas vinhas velhas e ricas de castas – cada uma com identidade própria – eu sou feliz a fazer coisas que são únicas e ao meu gosto. As vinhas produzem pouco? Pois produzem. E é por isso que os preços são muito diferentes.”
É mais ou menos nesta altura que Luís Serrano Mira (Herdade das Servas) entra na conversa para defender – como Francisco Toscano Rico – a matriz identitária dos vinhos. Acérrimo crítico do que se passa no Alentejo e noutras regiões com a entrada de vinhos da UE – é mesmo um assunto capaz de quebrar a sua conhecida bonomia –, o produtor de Estremoz vai ao ponto de dizer que “vivemos – em muitos casos – uma grande mentira quanto à origem dos vinhos que se colocam no mercado”, o que se traduz num risco em matéria de confiança com os consumidores. Para Luís Mira, a origem é tudo. “É a origem que me permite estabelecer um elo de confiança com o consumidor. Se eu digo que o meu vinho vem daquela região e daquela vinha, eu tenho de estar preparado para comprovar isso ao detalhe.”
E quanto à tal capacidade destes vinhos alavancarem a notoriedade da empresa, do país ou do enólogo? Isso é um facto ou é só conversa? Pedro Ribeiro, responsável de enologia da Herdade do Rocim e autor do Júpiter, diz o seguinte: “Como é óbvio, o Júpiter não nos tornou mais ricos. Isto não é uma operação comercial de curto prazo, mas uma coisa sabemos: o Vinha da Micaela, que nasce na vinha que deu origem ao Júpiter, transformou-se num vinho com uma procura enorme.” E continua. “Sou consultor numa empresa da região de Lisboa cujo proprietário é um empresário estrangeiro, mas não só fui contratado por um administrador português como é com ele que lido regularmente. Um dia esse administrador recebeu um mail do proprietário da quinta, com o anexo de um artigo a falar do Júpiter, e a dizer que o enólogo que ele gostava de ter no seu projecto era o autor do Júpiter. Ainda nos rimos um bocado.”
Pedro Lufinha admite não saber se, no fim das contas, o Quinta da Alorna 1723 será um projecto rentável, até porque com o vinho vem um livro objecto que custou bastante dinheiro, mas avançou com um exemplo interessante para a discussão. “Certo dia um crítico estrangeiro disse-nos que o nosso Marquesa de Alorna era tão barato face à sua qualidade que o tornava pouco credível. O que fizemos? Subimos o preço. O que aconteceu? Vendemos mais garrafas. Aliás, essa é a trajectória recente da Quinta da Alorna: vendemos hoje menos garrafas mas facturamos mais.”
Para o fim, Jaime Quendera, o homem que se conseguisse mais um cêntimo por cada garrafa que produz ficava rico de um dia para o outro. O enólogo da Adega de Pegões, da Casa Ermelinda Freitas e outros projectos não rejeita a importância destes projectos premium para posicionar Portugal nos mercados externos, mas avança que “estamos a falar de muito poucas garrafas em cada projecto, sendo que, nalguns casos, por uma razão ou por outra, são edições únicas, não repetíveis”. “Ora – peço desculpa – mas a minha realidade é outra: é o mercado, com as suas regras duras de competição, que manda.” E quando alguém, em jeito de provocação, pergunta ao enólogo se ele se sentiria confortável a lançar um vinho acima dos 200 euros, responde assim: “Não é a questão de fazer de fazer um vinho e marcá-lo com esses preços, a questão é que não concebo a ideia de lançar um vinho nesse patamar sem ter uma história sustentada a apoiá-lo, como acontece com as grandes referências francesas de casas com centenas de anos de história.”
E quando lhe recordaram que se estivermos à espera de registarmos muitos anos de história os franceses vão sempre dizer que têm muito mais, o enólogo dá parte do braço a torcer, mas salienta que, nestas matérias, “tem de haver regularidade na capacidade produtiva dos projectos e bom senso no aumento dos preços, caso contrário estamos perante epifenómenos”.
Seja como for, no final do debate, toda a gente esteve de acordo – Jaime Quendera e Francisco Toscano Rico incluídos – que Portugal deve entrar neste campeonato dos denominados fine wines e que só peca por ter chegado tarde ao jogo. Se os vinhos se vendem ou não, isto só os contabilistas das empresas em questão podem garantir. Uns dizem que já venderam a produção toda, outros que venderam metade e outros ainda não estão muito ralados com isso porque não é daqui que vem a saúde financeira das suas empresas. Mas quando Paulo Nunes afirma que já tem encomendas para o próximo Casa da Passarella Vindima – que ainda não está decidido –, isso significa que o movimento está no bom caminho.
Duas coisas sabemos: temos de, de uma vez por todas, saber gerir o que é raro e escasso; lá por termos garrafas a preços estratosféricos, nunca nos faltará vinho. Como diz o povo, está tudo certo.