Portugal tem de agir já para eliminar a Hepatite C até 2030

As respostas existem no terreno, mas falta uma estratégia nacional coordenada, a fim de se minimizar um problema de saúde pública.

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Portugal ainda vai a tempo de eliminar a Hepatite C até 2030. Mas tem de fazer mudanças imediatas. É necessária uma estratégia coordenada a nível nacional, que tem de ser acompanhada de mais financiamento, que integre sistemas de informação dispersos, e que não dependa apenas do voluntarismo e boa vontade das dezenas de pessoas que procuram rastrear e referenciar para tratamento as pessoas com hepatite C.

Este foi o principal alerta feito na reunião Targeting 2030, organizada pela AbbVie. Neste encontro, a 3 de Maio, em Lisboa, profissionais de saúde e responsáveis por programas de base comunitária que trabalham directamente com doentes e com grupos de risco (como os utilizadores de drogas, a população prisional ou os migrantes) analisaram o que se fez e ainda tem de ser feito em Portugal para cumprir a ambiciosa meta da Organização Mundial de Saúde – eliminar a Hepatite C, reduzindo em 90% o número de novos casos de infecção e em 65% a mortalidade associada.

“O caminho não tem sido fácil. É preciso concertarmo-nos, sermos estratégicos e objectivos para os anos que nos restam para eliminação da Hepatite C”, apontou Maria João Pinho, directora da unidade de cuidados especializados da AbbVie.

“O tratamento é a grande arma para eliminar”, sublinhou o hepatologista Arsénio Santos, presidente da Associação Portuguesa para o Estudo do Fígado. De facto, confirmou à margem desta reunião, Ricardo Fernandes, director Executivo do Grupo Ativistas em Tratamentos (GAT): “Temos uma possibilidade inédita na história da humanidade de eliminar uma doença de uma forma fácil, com medicamentos que são custo-eficazes.”

Porque é que, de acordo com estimativas partilhadas pela Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, existem ainda cerca de 40 mil casos por diagnosticar? “Há uma grande descoordenação”, referiu Arsénio Santos. Um exemplo claro é a falta de uma rede optimizada de partilha de informação. “Alguns doentes que foram identificados estão esquecidos”, porque o seu diagnóstico positivo se perdeu entre unidades de saúde.

Outro, é a necessidade de maior literacia – mesmo entre médicos, nomeadamente nos cuidados de saúde primários – sobre a doença. Existem sinais de alerta que poderiam levar a um potencial diagnóstico, explicou o gastrenterologista Filipe Calinas, que faz consulta descentralizada em sala de consumo assistido em Lisboa. “Bastar-nos-ia que os clínicos estivessem atentos a uma questão que antecede tudo: a elevação das enzimas hepáticas” nas análises clínicas de rotina. Outro ponto, mais difícil de confirmar numa consulta, de acordo com este especialista, seria o passado de consumos dos pacientes: “Muito boa parte da população com 50 ou mais anos que fez um esforço para esquecer e os médicos de família não conhecem [essa sua história]. Por isso defendo um rastreio a partir de uma determinada idade em que este risco foi maior.” Com base nas estatísticas de consumos de drogas injectáveis, Filipe Calinas estima em 100 mil as pessoas em risco nesta população.

Estar próximo de quem consome

Os especialistas são unânimes, quem está ou esteve em contacto com drogas injectáveis está entre a população de risco. “Nas prisões, mais de 70 a 80% dos doentes que tratamos e que estão detidos têm consumo de drogas, actual ou passado”, descreveu Armando Carvalho, membro da direcção da subespecialidade do fígado no Colégio de Medicina Interna da Ordem dos Médicos. Os projectos junto desta população têm tido sucesso e “as coisas estão controladas”, assumiu Cristina Valente.

O “grande problema” são agora os utilizadores de droga que não têm acompanhamento, explica a presidente do GEPCOI, o grupo português para o estudo da co-infecção: “É difícil trazê-los para unidades de saúde” e convencê-los de que a doença terá consequências terríveis (como cirroses ou doença oncológica), quando o seu horizonte temporal é de horas apenas, até à toma da próxima dose. “O modelo que temos tradicional de a pessoa doente recorrer à unidade porque tem doença que tem de ser tratada não resulta. São populações que além da adição, têm situações muito fragilizadas. Se não houver estratégias de irmos a estes locais, nunca vamos conseguir eliminar”, considerou o infecciologista Nuno Marques, director clínico da Unidade Local de Saúde da Arrábida, em Setúbal.

João Goulão, presidente do ICAD, o Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências, considera, por isso, essencial “a agilização de circuitos, a criação de vias verdes” (ver entrevista). Pedro Narra Figueiredo, presidente da Sociedade Portuguesa de Gastrenterologia, concorda que é “fundamental” a referenciação aos hospitais dos casos positivos “para que, atempadamente, estes doentes possam ser tratados eficazmente com os medicamentos disponíveis.” Também é importante, referiu em entrevista, conseguir explicar que “a ausência de diagnóstico precoce e respectivo tratamento pode originar uma evolução para cirrose e, posteriormente, para cancro do fígado.”

Para Cristina Valente, a solução seria testar – e ter capacidade para usar os testes reflex, que indicam a presença do anticorpo e se o vírus está activo ou não – e administrar a medicação numa resposta de proximidade, como as carrinhas que dão comida ou realizam a troca de seringas. É necessário estar onde esta população está.

A proximidade seria desejável também, entende Arsénio Santos, com a extensão para todo o país do programa de teste rápido nas farmácias – que está a ser aplicado nas farmácias de Oeiras. Através desta “rede complementar das farmácias”, chega-se também “à população menos óbvia”, explicou Pedro Silva, representante da Associação Nacional de Farmácias. “Temos estado em perspectiva colaborativa local e nacional para colocar a rede das farmácias à disposição, para se trabalhar em estratégia mais organizada de testagem da população”, assegurou.

A questão dos migrantes

É também importante assumir este combate a nível global, sob pena de os bons resultados obtidos num país serem postos em causa pelo descontrolo das infecções noutro. “Eliminar uma doença, neste momento, não se consegue com planos nacionais, tem de se conseguir com estratégias internacionais”, referiu Armando Carvalho.

Os migrantes são um grupo que está a gerar particular preocupação entre os especialistas. Foram infectados nos seus países de origem ou acabam por adquirir a doença em Portugal, devido às situações precárias em que vivem. “Nós vamos eliminando nos portugueses e os migrantes vão “carreando” a Hepatite C”, avisou Filipe Calinas, que desenvolve a consulta descentralizada em conjunto com a Associação Ares do Pinhal. Nesta associação que tem mais de 2900 inscritos, explicou o enfermeiro Paulo Caldeira, registou-se um aumento de 30% nos migrantes consumidores de drogas que chegam com RNA para a Hepatite C positivo. “Ainda ontem fiz um rastreio a um utente que em 2021 era negativo e agora é positivo”, afirmou.

É essencial, explicou Cristina Valente, “criar um elo imediato” à chegada ao país: “Não quer dizer que faça o teste no aeroporto, como se fez com a Covid, mas ser de imediato encaminhado para criar uma acessibilidade fácil. É difícil pela língua, pelo desconhecimento.” Tanto João Goulão, presidente do Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências, como Filipe Calinas, defendem, por isso, que se rastreie e trate em grupo. “É errado tratarmos os doentes avulsamente. Infectam os companheiros com quem vivem cá nos quartos. É estratégia errada tratarmos um deles, devemos tratar todos”, disse Filipe Calinas. E mais, acrescentou Goulão: “O acesso aos cuidados de saúde, acesso à habitação, às condições mais básicas da dignidade humana são fundamentais para que possa haver nesta estratégia mais lata [um resultado] consequente”.

Do voluntarismo para a coordenação

Guilherme Macedo refere em entrevista que “é possível” a meta de eliminação até 2030, mas Portugal tem perdido tempo precioso: “Os políticos vão mudando, as estruturas decisórias vão-se modificando e os interlocutores também são diferentes. Nós, médicos, tentamos há algum tempo mostrar que isto podia ser uma bandeira política de um qualquer governo – a nossa cor é a cor da solução dos doentes. Podíamos ser uma bandeira de sucesso. E, lamentavelmente, nunca houve uma resposta consentânea, no sentido de encontrar uma estrutura que organizadamente respondesse.” Para o médico do Hospital de São João, que está envolvido num programa com sucesso no Estabelecimento Prisional de Custóias, “tem de haver um pivô central para gerir todos os grupos”. Caso contrário, considera o também Presidente da Organização Mundial de Gastrenterologia, “o máximo que conseguimos ir fazendo no país, e também não de uma forma estruturada, mas dependente de vontades individuais e de pequenos grupos, são estratégias de micro-eliminaçao, que têm limitações severas. Não é verdade que a macro-eliminação resulte do somatório de muitas micro-eliminações. [Há uma] tentativa de se dizer que estamos a conseguir vários efeitos locais, mas isso não garante em nada o sucesso nacional”, alerta.

“O muito que se tem feito faz-se por carolice, por voluntarismo. Isto não pode ser assim”, concluiu Armando Carvalho. “A Hepatite C não é, neste momento, um problema essencialmente médico. Do ponto de vista médico, é das coisas mais simples que existem, porque é muito fácil de diagnosticar, facílimo de tratar com os fármacos disponíveis”. Para o especialista, “falta uma coisa extraordinariamente importante: articulação.”