Estamos a aprender a viver com os lobos à volta do Grande Vale do Côa
Conviver com espécies selvagens já acontece em Portugal. “Estamos a aprender a coabitar com as nossas espécies carismáticas”, diz quem trabalha com o lobo-ibérico. Hoje celebra-se a Biodiversidade.
Com pouco mais de um ano, a cachorra Paquita já é tão grande como as ovelhas que guarda na pequena propriedade de Manuel Gralha, no Sabugal, distrito da Guarda. Esta fêmea Serra da Estrela faz a sua vida ao pé das ovelhas - por vezes, num olhar mais fugidio, até se confunde com elas. “A Paquita é um animal que gosta de estar sempre presente ao lado das ovelhas, é a protectora. É um bem essencial para nós”, conta o produtor.
Paquita veio para a quinta de Manuel Gralha quando tinha dois meses, no âmbito do projecto Life WolFlux, promovido pela associação Rewilding Portugal, que visa promover as condições necessárias para apoiar a viabilidade da população de lobo-ibérico portuguesa a sul do Douro, em particular na zona do Grande Vale do Côa, onde existem apenas algumas alcateias dispersas.
Manuel Gralha soube do projecto através de conhecidos e candidatou-se a receber um cão de gado. O maior risco, actualmente, são os “cães que são predadores”, que às vezes aparecem e deixam mordidelas nas suas ovelhas. Os estudos estimam que a população portuguesa de lobo-ibérico (Canis lupus signatus), uma subespécie de lobo-cinzento, seja de 250 a 300 animais, mas a sua presença é maior e mais estável a norte do rio - por exemplo, em locais como o Parque Natural de Montesinho, em Bragança, o lobo-ibérico nunca deixou de existir. No sul da Guarda, já perto da Serra da Malcata, os avistamentos de lobo ainda são raros. Mas, mesmo sendo mais esporádicos nesta região, é melhor prevenir: “Desde que a gente tenha animais para proteger, não é?”
A visita à quinta de Manuel Gralha serve para acompanhar a veterinária Marta Vieira, responsável pela selecção e acompanhamento dos cães de gado entregues através do projecto. Desde 2020 que a equipa da Rewilding Portugal tem gerido um programa de cães de gado (inspirado em experiências do Grupo Lobo - Associação para a Conservação do Lobo e do seu Ecossistema), entregando-os quando ainda são cachorros aos produtores locais para proteger melhor o seu gado da predação por lobos-ibéricos. Em Abril deste ano, já tinham sido entregues mais de 100 cães de gado.
Hoje, Paquita tem um ano e já se lhe juntou um companheiro, Leão, cão da Serra da Estrela com dois anos. Leão prefere ficar à parte, mas junta-se a Paquita sempre que sente alguém (ou algo) a aproximar-se. “Os dois fazem o conjunto que é necessário para evitar que haja predadores.”
Coexistência é possível - com adaptação
O programa de cães de gado complementa os esforços da Rewilding Portugal para aumentar a disponibilidade de presas silvestres para os lobos através do reforço das populações locais de corços no Grande Vale do Côa. Mas o que tem o gado a ver com os corços? É simples: cuidar do lobo-ibérico é cuidar do mundo à sua volta, não apenas da natureza mas também das comunidades humanas.
Ou seja, o trabalho de recuperação de espécies ameaçadas tem que passar pela adaptação das populações ao regresso desta vizinhança selvagem. E isso pode passar pelo regresso de outras tradições, como a adopção de cães de gado para evitar futuros problemas de coexistência.
Há países da Europa onde os problemas são bastante maiores, à escala das suas enormes pastagens sem cercas. “É o McDonald's dos lobos” - mas não tem que ser, nota o biólogo André Couto. A falta de adaptação das pastagens aos predadores tem como resultado encontros imediatos que, aliados ao ressentimento pela falta de sistemas de compensação justos pelas perdas de gado, já têm trazido resultados preocupantes, como os apelos a que se retire o nível de protecção de determinadas espécies de forma a poderem ser caçadas.
A resposta da Rewilding é completamente diferente - e os resultados em Portugal mostram que é possível equilibrar ambos os interesses. Esta associação aposta numa abordagem de restauro da natureza focada no equilíbrio das diferentes funcionalidades dos ecossistemas.
“Os animais precisam dessa estabilidade para poder caçar aquilo que os produtores não querem lá”, sublinha a veterinária Marta Vieira, explicando que as alcateias dispersas e pequenas perdem a capacidade de caçar presas como os incómodos javalis.
Há ainda uma questão de percepção: “É verdade que, localmente, pode fazer a diferença para as explorações, mas o lobo causa perdas ínfimas em comparação com as perdas que causam as doenças e outro tipo de problemas que assolam a criação de gado na Europa”, confirma Sara Aliácar, directora de conservação da Rewilding Portugal. Ou seja, a presença de predadores de topo como o lobo-ibérico é um sinal da saúde dos ecossistemas: “Onde há lobos, há ecossistemas equilibrados.”
O lobo-ibérico não tem que ser um “lobo mau”
O projecto LIFE WolFlux, que teve início em 2019 e prepara-se para os últimos meses de trabalho, teve como objectivo melhorar a coexistência entre o lobo ibérico e as comunidades humanas, num cenário de potencial aumento de ataques do lobo ao gado nas zonas onde há pouca abundância e pouca diversidade de presas selvagens. “Estamos a aprender a coabitar com as nossas espécies carismáticas”, explica o biólogo André Couto, da Rewilding Portugal. Para isso, é preciso pôr “todas as peças do ecossistema a funcionar”.
Comecemos então a olhar para o ecossistema do lobo: no início do século XX, o lobo-ibérico deixou de ter presas naturais, quando os veados e javalis se tornaram praticamente extintos, à medida que foram perdendo as suas zonas de refúgio, como florestas e matos. Com a falta de presas, abriu-se o potencial para conflito entre o lobo e as populações humanas. Quando não encontra corço, caça gado.
Foi em 2020 que Manuel Teixeira Ferreira viu o primeiro ataque de lobo-ibérico às suas vacas leiteiras. “Cheguei aqui e encontrei prejuízos.” Era um dia de céu encoberto, em que os painéis solares não podiam gerar electricidade, e foi a Viseu procurar um gerador. No regresso, encontrou uma das suas vacas tombadas no chão, de patas para o ar. Ao levantar os olhos, viu dois lobos a arreganhar-lhe os dentes. “Oh ladrões, fostes vós!”
Ligou para o Parque da Serra da Estrela, cobriu a vaca com plástico e esperou que os vigilantes do ICNF viessem confirmar que tinha sido, de facto, um ataque de lobo (e não de algum cão errante). O sistema de vigilância funcionou, mas a compensação monetária nunca chegou. Entretanto, teve mais dois ataques de lobos.
A solução chegou através do WolFlux, que ajudou a montar uma cerca de malha electrosoldada à volta de uma parte da propriedade de Manuel Ferreira. “Falámos com o ICNF para perceber que criadores de gado na zona é que já tinham tido ataques”, explica André Couto, que nos acompanha na visita à quinta que tem um total de cinco hectares. Com uma altura mínima de dois metros, estas vedações enterram-se também no solo a uma profundidade de 30 a 40 centímetros, de modo a evitar que os lobos escavem para entrar.
“Não é uma solução para pastagens muito grandes”, descreve o biólogo. “A ideia é criar uma zona segura em que as crias e as fêmeas prestes a parir possam estar em segurança, ou para guardar o gado durante a noite”.
Os ataques de lobo já não se contam entre os seus problemas, mas as dificuldades com o gado continuam. Esta não é uma vida fácil.
Caçadores ao serviço das presas
O que vai então o lobo comer? Arrumada a parte da coexistência mais pacífica com as comunidades humanas, é possível tratar da parte crucial do projecto: a recuperação das presas naturais do lobo, como o corço, garantindo que essas presas têm habitats saudáveis para viver.
O projecto Life WolFlux, coordenado pela Rewilding Portugal, tem como parceiros a Rewilding Europe e a Universidade Aveiro, responsável pela monitorização da fauna. A Zoo Logical é outro dos parceiros na monitorização lobo ibérico, dando apoio na recolha de material genético para caracterizar a população.
No terreno, o projecto ganha corpo através das parcerias locais, em colaboração próxima não apenas com as juntas de freguesia, mas também com as associações que gerem as zonas de caça e ainda a associação de baldios. “O que distingue este projecto de projectos que tenham existido no passado é o foco muito grande em trabalhar com comunidades”, explica o biólogo André Couto. “Todas as coisas são feitas com o aval e o envolvimento das pessoas.”
Na região de Vila Nova de Paiva, no distrito de Viseu, onde há alcateias estabelecidas de lobo-ibérico mas há ainda pouca densidade de corço (estes distribuem-se mais na zona do Vale do Côa), uma das ajudas mais preciosas foi a dos caçadores, que puseram o conhecimento do território ao serviço do projecto.
Neste momento, na maior parte do território, o corço não é uma espécie cinegética, ou seja, a sua caça não é autorizada. O trabalho com as zonas de caça de Vila Nova de Paiva e Moimenta da Beira permitiu a criação de um Plano Global de Gestão do Corço, uma iniciativa inovadora que permitiu limitar a caça da espécie até que a população de corços atinja uma maior densidade nesta região.
Renaturalizar o interior abandonado
Em Vila Nova de Paiva, o projecto cuidou que os “animais tenham acesso a mais recursos, portanto, mais opções”, procurando atingir uma população sólida, entre dois e três animais por hectare. Há outros locais onde se faz um trabalho semelhante, como nas serras da Freita e da Arada, onde a reintrodução do corço tem sido feita desde 2014 e já se começa a registar corço na dieta do lobo.
Foi preciso preparar o território para o regresso do corço, através de desmatações selectivas e da sementeira com a espécies nativas. A disponibilidade de água também é extremamente importante na área vital do corço. Aliás, na Península Ibérica, com os seus Verões secos, estes animais tendem a ir à procura de mais recursos, deslocando-se para outras zonas, por exemplo, mais próximas do rio. Essa deslocação, contudo, traz riscos, como a morte ao cruzar estradas ou a exposição à caça furtiva em zonas não vigiadas.
Outra medida essencial foi, por isso, criar zonas de charcas - foram criadas 32 charcas nos últimos anos, em grande parte com a ajuda preciosa dos caçadores para identificar os pontos de água nos territórios.
“Não estamos esquecidos”
As pessoas, claro, continuam a ser essenciais. A exploração cinegética é uma mais-valia para o território, parte fulcral do turismo rural que traz algum dinamismo à região. O clube é também um dos refúgios de associativismos importantes para a coesão territorial. “Se não forem as zonas de caça ou projectos deste tipo, fica tudo ao abandono”, lamenta Vítor Afonso, presidente do Clube Desportivo de Caça e Pesca de Vila Nova de Paiva.
Durante o dia, Vítor Afonso gere a sua empresa de instalações eléctricas. Nos tempos livres trata dos assuntos enquanto presidente do clube, do qual é sócio desde os oito anos e presidente há quatro. O associados não têm mãos a medir para cuidar das áreas de caça: naquela porção de terreno, ajudaram a semear cerca de 200 leiras com trigo, centeio, aveia, milho. Noutras áreas, ajudaram na desmatação.
“Temos o limpo cada vez mais limpo e o sujo cada vez mais sujo”, comenta o caçador ao olhar para os campos à margem da estrada, notando o abandono. Antes havia cuidado na divisão entre zonas de cultivo, zonas de mato para a forragem dos animais e zonas de floresta. “Agora, o mosaico está a desaparecer.”
Com o tempo, a maior parte das pessoas começa a ver valor nos resultados do projecto. A maior humidade na paisagem e mais retenção de água, por exemplo, também reduz a intensidade dos incêndios. As charcas mais abundantes podem também ser utilizadas pelos meios de combate aos fogos. A existência de grandes herbívoros também é benéfica para a redução dos matos que se acumulam nos terrenos.
Espécies “carismáticas” como o lince e o lobo-ibérico podem também trazer receitas no âmbito do turismo rural. “Este tipo de projectos também é muito bom para as pessoas sentirem que se faz algo. Não estamos esquecidos”, reforça Vítor Afonso. “Toda a gente aqui envolvida sai a ganhar”, nota André Couto.
Regresso à natureza
Cães de gado no sul da Guarda ou corços selvagens no norte de Viseu são peças de um puzzle complexo que a Rewilding Portugal está a montar e que tem como coração o Grande Vale do Côa, uma área histórica da reprodução do lobo ibérico com aproximadamente 300 mil hectares que pretendem tornar num grande corredor ecológico. “Estamos a trabalhar para fortalecer o Côa como corredor e para criar uma área piloto da Rewilding em Portugal”, descreve Sara Aliácar, directora de conservação da organização.
Para fortalecer esse corredor ecológico, têm sido criadas “reservas Rewilding” com nomes como Vale Carapito, Ermo das Águias ou o Paul de Toirões. Mas a associação também tem apostado em desenvolver a economia da natureza, cultivando também “uma visão positiva e um orgulho das comunidades locais perante o património natural e as espécies que cá existem”, conta a ecóloga.
“Este movimento de Rewilding parte de uma premissa: nós não somos o principal actor disto tudo”, nota Pedro Prata, líder da equipa da Rewilding Portugal, enquanto nos mostra o Vale Carapito, uma das propriedades que são um ex-líbris da Rewilding Portugal. “Estamos incluídos no grande grupo de seres vivos que compõem a biosfera deste planeta e que é interdependente para a sua própria sobrevivência neste planeta.” E para sublinhar a importância deste equilíbrio entre espécies hoje celebra-se o Dia Mundial da Biodiversidade.
À nossa volta, vemos a pastar meia dúzia de cavalos Sorraia, uma espécie que vive aqui em estado semi-selvagem. “Esta é a manada do Nilo”, explica-nos Pedro Prata, indicando o macho que nos encara. Observando de perto, percebemos que um dos pequenos animais nasceu no dia anterior - uma pequena potra que já se coloca de pé, sem nunca se afastar da mãe.
“O melhor contributo que podemos dar é ser coabitantes, responsáveis e humildes com os outros seres vivos deste planeta”, explica. “Nós não queremos salvar espécies ameaçadas, queremos encontrar espaço para que todas cá vivam.” Olhando para a pequena família do Nilo, o horizonte ilumina-se mais um pouco.