Tribunal Internacional para a Lei do Mar emite parecer histórico para proteger oceanos e clima

Gases com efeito de estufa são uma forma de poluição marinha e, por isso, os países estão obrigados a proteger o mar e o clima para além das metas no Acordo de Paris, disse o Tribunal Internacional.

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No centro, Payam Akhavan, principal advogado dos países que pediram ao tribunal do mar para se pronunciar Fabian Bimmer/REUTERS
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A emissão de gases com efeito de estufa é uma forma de poluição marinha à luz da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (UNCLOS) e, como tal, os Estados são obrigados a proteger os ecossistemas marinhos, e até a restaurá-los, considerou o Tribunal Internacional para a Lei do Mar nesta terça-feira. E para satisfazer esta obrigação, não bastará aos países cumprir os compromissos (voluntários) de redução das suas emissões assumidos no âmbito do Acordo de Paris, sublinham os juízes de Hamburgo. Os juízes dizem que os Estados têm de ir além do Acordo de Paris para salvar os oceanos.

É um parecer histórico, desencadeado por um conjunto de pequenos Estados Insulares que mais têm a perder com as alterações climáticas, nomeadamente por causa da subida do nível do mar: Tuvalu, Antígua e Barbuda, Vanuatu, Saint Kitts e Saint Nevis, Saint Vicent e Grenadines, Saint Lucia, Niue, Palau e Bahamas. O grupo, criado na cimeira do clima das Nações Unidas de 2021 (COP26, em Glasgow, no Reino Unido) dirigiu duas perguntas ao tribunal criado pela UNCLOS.

"O que aconteceu hoje foi que a lei e a ciência se juntaram neste tribunal, e ambas ganharam", afirmou Cheryl Bazard, embaixadora das Bahamas na União Europeia, numa conferência de imprensa online.

Em traços largos, uma pergunta pedia ao tribunal para determinar se as emissões de gases com efeito de estufa podem ser consideradas poluição marinha, por causa das alterações que provocam nos oceanos – aquecimento e acidificação, por exemplo – e outra solicitava que fossem determinadas as obrigações dos países para proteger e preservar o ambiente marinho desta poluição.

Foi a primeira vez que um tribunal internacional foi chamado a pronunciar-se sobre a obrigação que os Estados têm de proteger o ambiente face às alterações climáticas – neste caso, no contexto do mar.

“Foi o primeiro tribunal internacional a abordar a relação entre as alterações climáticas e a protecção dos oceanos. É uma crise que põe em perigo dois dos bens comuns da humanidade, os oceanos e a atmosfera, cujos destinos são inseparáveis”, disse ao Azul Nikki Reisch, directora do programa de clima e energia do Centro de Lei Internacional Ambiental, uma organização não-governamental norte-americana, numa conversa telefónica.

O oceano absorve 25% de todas as emissões de dióxido urbano de origem humana, e captura 90% do calor em excesso gerado por essas emissões. É o maior sumidouro, ou reservatório, de carbono do planeta, e gera 50% do oxigénio de que os seres vivos precisam para respirar. Mas o carbono em excesso perturba vários processos químicos e biológicos do oceano, e está por trás de fenómenos como a acidificação das águas – que dissolve os minerais das conchas de ostras, camarões e outros animais, bem como dos corais.

Poluição, sem dúvida

O tribunal não teve dificuldade em encaixar as emissões de gases com efeito de estufa na categoria de poluição, tal como definida na convenção e, portanto, os Estados signatários estão obrigados a proteger e conservar o ambiente marinho.

Dessa forma, “os países têm a obrigação de tomar todas as medidas necessárias para evitar, reduzir e controlar a poluição marinha causada pelas emissões antropogénicas [causadas pelo homem] de gases com efeito de estufa e de harmonizar as suas políticas”, consideraram os juízes. Essas medidas não podem ser discricionárias: “Devem ser determinadas de forma objectiva”, frisa o parecer.

Entre outras coisas, tem de ser levada em conta a ciência mais actual e as regras dos tratados internacionais sobre as alterações climáticas, como a Convenção das Nações Unidas ou o Acordo de Paris. “Em particular, a meta global de limitar o aumento de temperatura global a 1,5 graus Celsius acima dos valores pré-industriais e o calendário que é preciso cumprir para atingir este objectivo”, consideraram os juízes.

O padrão de actuação exigido é de “diligência devida”, o que significa que é necessário fazer uma avaliação exaustiva dos riscos em todas as áreas relevantes, tendo em conta que as emissões de gases com efeitos de estufa causam “danos irreversíveis ao ambiente marinho”. Esse cuidado e essa urgência são ainda redobrados quando se trata de tomar todas as medidas necessárias para que a poluição causada pelas emissões de um Estado não causem danos a outros Estados ou se expandam para lá da sua área de soberania, é sublinhado.

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Nassau, a capital das Bahamas, um dos Estados insulares que pediu o parecer do tribunal Nuno Ferreira Santos

Na prática, os juízes do tribunal do mar estão a dizer que os países têm de tomar acções significativas para travar o caminho de sobreaquecimento do planeta no qual os cientistas nos vêem lançados. E se os acordos internacionais sobre as alterações climáticas não obrigam os Estados a comprometer-se com valores e metas – o Acordo de Paris funciona apenas na base de compromissos voluntários dos países para atingir um objectivo com que todos concordaram –, este parecer diz-nos que há outros instrumentos da lei internacional com mais força que podem ser accionados para forçar a acção.

“É estabelecido um claro precedente legal para lidar com as alterações climáticas através dos quadros legais internacionais já existentes, e reforça a responsabilidades dos Estados em actuar”, comentou Louise Fournier, da Greenpeace, que falou numa vitória.

Parecer vai ter força de lei?

O parecer, no entanto, não focou as questões de definição da responsabilidade ou responsabilização dos Estados se não cumprirem as suas obrigações, porque as perguntas formuladas ao tribunal não enunciavam essa pergunta. “O tribunal considera que, se houvesse a intenção que se pronunciasse sobre estes assuntos, isso teria sido formulado de forma expressa no pedido que foi feito”, diz a declaração, lida pelo juiz Albert Hoffmann, que presidiu ao caso.

Este parecer do tribunal do mar não é uma decisão vinculativa. “Não é uma ordem dirigida a um Estado, mas é uma declaração com autoridade sobre legislação internacional vinculativa, e esta interpretação do tribunal dos deveres legais aplicáveis terá impacto”, assegura Nikki Reisch. Embora a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar tenha sido assinada por 169 países, há alguns importantes de fora, como os Estados Unidos.

Mas os EUA reconhecem a UNCLOS ao abrigo do direito consuetudinário – ou seja, o conjunto de comportamentos repetidos e uniformes dos Estados ao longo do tempo, bem como a convicção dos Estados de que uma determinada prática é obrigatória sob o direito internacional. Isso dá algumas garantias.

“Não estou assim tão preocupado com a possibilidade de este parecer ser acatado ou não”, comentou, numa conferência de imprensa online, Payam Akhavan, o advogado principal do grupo de países que apresentou as perguntas ao tribunal do mar e professor de Direito Internacional na Universidade de Toronto (Canadá).

“Muitas das disposições da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar são consideradas direito internacional consuetudinário, que se aplica independentemente de um Estado fazer parte do tratado”, explicou Nikki Reisch.

É importante que o tribunal tenha considerado que as obrigações legais dos Estados não se limitam ao estipulado no texto da Convenção das Alterações Climáticas, ou do Acordo de Paris, sublinhou. Fica claro que é preciso ir além das palavras: “Promessas e aparições de políticos em conferências sobre o clima não satisfazem todas as obrigações legais dos Estados de agir em matéria de clima”, salientou a especialista legal norte-americana.