Sam Spade e John Sugar, dois detectives à antiga para os dias de hoje

Em Monsieur Spade, Clive Owen é a personagem clássica de Dashiell Hammett a viver no Sul de França. Já em Sugar, Colin Farrell é um estranho detective cinéfilo em Los Angeles.

Clive Owen é Sam Spade, já mais velho, em <i>Monsieur Spade</i>
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Clive Owen é Sam Spade, já mais velho, em Monsieur Spade DR
Colin Farrell é o estranho John Sugar em <i>Sugar</i>
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Colin Farrell é o estranho John Sugar em Sugar DR
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Sam Spade, o detective privado criado por Dashiell Hammett, não apareceu em muitas histórias deste mestre do roman noir americano. Mas como protagonista de Relíquia Macabra, várias vezes adaptado ao cinema – talvez o título mais famoso seja o de John Huston, de 1941 e com Humphrey Bogart no papel principal –, é um dos detectives duros mais célebres da ficção de detectives. Monsieur Spade, uma nova série da AMC em parceria com o francês Canal+, que se estreia em Portugal nesta quarta-feira (às 22h10), no TVCine Edition, pega em Spade, tira-o da sua São Francisco natal, pondo-o no Sul de França, e imagina-o 20 anos depois da acção dessa história famosa.

Estreada inicialmente em Janeiro, a minissérie é uma criação de Scott Frank, argumentista veterano com demasiados créditos no cinema para enumerar – Romance Perigoso, de Steven Soderbergh, valeu-lhe a nomeação para um Óscar em 1999, por exemplo. Frank trabalhou durante anos como script doctor, a pessoa a quem os estúdios e produtores telefonam para resolver problemas de guiões alheios, e desde 2017 que se tem reinventado como autor de televisão, com séries como Godless e The Queen's Gambit – que lhe deu um Emmy de realização, além de ter vencido o de melhor série limitada. Scott Frank realizou todos os seis episódios e dividiu a escrita com o seu vizinho Tom Fontana, que sabe de televisão como ninguém, tendo participado em séries como St. Elsewhere ou Departamento de Homicídios e sendo o criador de Oz.

Spade está fora do seu elemento. O ano é 1963. O detective, a quem é dada vida desta vez por Clive Owen, escolheu uma vida tranquila numa pequena terra, casou-se e enviuvou. Prefere fazer o seu próprio vinho em vez de beber os destilados que caracterizam um detective duro tão icónico. Tem também problemas de saúde: o médico, que lhe faz um exame à próstata, diz-lhe que está na fase inicial de um enfisema e instiga-o a deixar de fumar. A ideia é tirar, e questionar, tudo aquilo que se associava à personagem. A tranquilidade, que tem como pano de fundo as consequências da Guerra da Argélia, não demora muito a ser interrompida. Há o regresso de um rival, crimes hediondos num convento, e algo que, como o Falcão de Malta de Relíquia Macabra – que era um objecto –, toda a gente, inúmeras facções, ambicionam ter em sua posse. A rodear Owen estão nomes como Denis Ménochet, Louise Bourgoin, Chiara Mastroianni ou Stanley Weber.

Este não é o único detective a encabeçar um neo-noir na televisão, ou no streaming, deste ano. Na sexta-feira passada, Sugar (Apple TV+) chegou ao fim. Em comum, as duas séries têm um mistério algo confuso a ser investigado, provavelmente ligado a conspirações maiores, traços clássicos de histórias destas. Esta criação de Mark Protosevich, que escreveu filmes como Eu Sou a Lenda, passa-se nos dias de hoje e tem muitas das características tradicionais deste género: passa-se em Los Angeles, o protagonista apanha pancada e, como Elliott Gould em O Imenso Adeus, de Robert Altman, até vai à praia de fato e gravata.

É uma história estranha e metarreferencial. John Sugar, a quem é dada vida por Colin Farrell, é muito mais virtuoso e humanista do que os detectives clássicos, apesar de os ter a todos como modelo explícito. Odeia violência, diz-nos, usando-a só como último recurso. Ultracompetente e inteligente, é um cinéfilo que parece nunca ter visto um filme feito nas últimas quatro décadas, apesar de ter uma subscrição da revista britânica Sight & Sound. As referências a outros filmes são inúmeras, cortesia do brasileiro Fernando Meirelles, que realizou cinco dos oito episódios, que adicionou à série – ideia dele, não do criador – excertos de filmes antigos, algures entre a série cómica da HBO dos anos 1990 Dream On e a comédia noir de 1982 Cliente Morto não Paga a Conta, de Carl Reiner com Steve Martin. É, às vezes, um contraste estranho: isto já foi feito com muito mais arte, mas não deixa de ser um neo-noir de detectives em Los Angeles com um óptimo actor no centro e um mistério até interessante.

Sugar investiga o desaparecimento de Olivia Siegel, a neta de um poderoso produtor de Hollywood, cujos filmes são alguns dos favoritos do detective. É uma família rica em que pelo menos parte de cada geração é menos virtuosa e talentosa do que a anterior. Só que os segredos dos Siegels não são tantos quanto os do estranho Sugar, algo que a série sinaliza a toda a hora. Há, de facto, alguma coisa de bizarro a passar-se com ele, o que altera a nossa percepção sobre isto tudo, um twist que é revelado bastante tarde, e talvez devesse fazer parte da premissa desde o início. Ao lado de Farrell estão nomes como Kirby (anteriormente conhecida como Kirby Howell-Baptiste), Amy Ryan, James Cromwell – o que torna ainda mais estranha a menção de Los Angeles Confidencial, filme em que o actor aparece, num dos muitos diálogos atabalhoados –, Nate Corddry ou Dennis Boutsikaris.

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