Um galo de Barcelos e um presidente do Conselho de Ministros entram num teatro
Mala Voadora estreia Cantar de Galo (Old Cock), no FITEI, um monólogo sobre manipulação e invenção da tradição, escrito pelo prémio Pulitzer Robert Schenkkan.
Qualquer início de peça ou filme arrisca o tom épico quando se faz acompanhar de Also sprach Zarathustra, Op. 30, de Richard Strauss. No caso, a epopeia é a do galo de Barcelos, tanto ícone de uma certa portugalidade como uma recordação plástica e barata de uma escapadinha turística no país.
O percurso desta figura simbólica, do nascimento do mito à invenção da tradição, é contado em monólogo por Jorge Andrade, que é também o director artístico da Mala Voadora, companhia que estreia Cantar de Galo (Old Cock), neste sábado, no seu espaço, no Porto.
É um monólogo que, na verdade, se transforma em diálogo, mas apenas a partir do momento em que a figura de António de Oliveira Salazar surge entre a neblina (ou será vapor sulfuroso?), projectada em palco para ser confrontada pelo próprio galo. É um deepfake (falsificação realista de um vídeo) a preto e branco do cavernoso ditador que tem como base uma gravação do próprio Jorge Andrade.
Nesta peça integrada na programação do Festival Internacional de Teatro Expressão Ibérica (FITEI) e de título dúplice, o dramaturgo Robert Schenkkan pega numa das declinações da lenda de Barcelos, segundo a qual o bicho, já morto e confeccionado, terá salvado um peregrino da forca ao ressuscitar e cantar perante o juiz.
Em palco, a ave percorre o seu mito fundador, mas é acometida por interrogações identitárias perfumadas com uma pulsão justicialista e questiona a “ficção nacionalista manipuladora” na qual foi encaixada durante o Estado Novo.
A história e o mito
O texto começou a germinar em 2022, quando Schenkkan passou uns meses em residência, na Mala Voadora. O norte-americano esteve no Porto ao abrigo de um programa da autarquia que pretende promover o contacto de artistas internacionais com a cidade. Daí poderia resultar – ou não – um trabalho sobre o sítio, não havendo a obrigação de o dramaturgo e guionista “pagar” o alojamento com um texto para a casa.
Ainda assim, Robert Schenkkan, que recebeu um Tony pela peça All The Way, em 2014, perguntou como poderia retribuir a hospitalidade e Jorge Andrade devolveu-lhe com a sugestão de um monólogo. Passadas duas semanas, o norte-americano já tinha avançado um bocado de texto. “Era sobre o galo de Barcelos”, conta o actor.
A figura preenche prateleiras a fio dos estabelecimentos que rodeiam a casa da Mala Voadora, instalada na Rua do Almada, na Baixa do Porto, uma viçosa selva turística onde restauração, alojamentos locais e lojas de bugigangas nascem como cogumelos.
Schenkkan interrogou-se sobre a origem de tão particular objecto. Na verdade, o mergulho na mitologia não é um corpo estranho no trabalho do dramaturgo. Foi este campo que lhe valeu o prémio Pulitzer, em 1992, com o conjunto de peças curtas The Kentucky Cycle.
“Ele foi estudar, nós organizámos alguns encontros com académicos e havia alguma intuição sobre aquela história não bater certo”, contextualiza Jorge Andrade, sobre Cantar de Galo (Old Cock), já depois de despir o volumoso fato de penas coloridas, crina e patas de três garras.
O galo de Barcelos, como símbolo, é várias coisas. Na peça, ouve Salazar dizer-lhe que foi um dos seus “maiores sucessos”, mas reclama o direito à sua parte da história, deseja a vingança, quer mostrar que o ditador perdeu.
Com o deepfake, Cantar de Galo apropria-se do “jogo populista” e utiliza ferramentas de distorção de uma forma invertida, para “manipular um fascista para dizer a verdade”, nota.
É um jogo, admite Jorge Andrade, uma manipulação para contar a história de uma manipulação: a lenda do galo de Barcelos foi utilizada para propaganda do regime e aqui o ditador é utilizado para revelar essa invenção da tradição, num campeonato de imagem e propaganda em que o galo não está sozinho, mas conta com a companhia do Castelo de São Jorge, as marchas populares... A lista continuaria.
Essa distorção narrativa foi criada através dos mesmos mecanismos que tentaram convencer um povo de que não vivia em situação de privação abjecta, mas o impelia a usar “a pobreza como medalha de honra”, “a reviver uma era mais heróica, de um tempo em que as coisas eram mais simples”.
São histórias que reverberam até aos dias de hoje, assim como a lenda do galo de Barcelos, em que o culpado sem provas de um roubo é o peregrino, o estranho, o forasteiro. “Há esse medo do estrangeiro, do que vem de fora que agora faz algum eco”, comenta Jorge Andrade.
Cantar de Galo (Old Cock) tem apresentações marcadas para este sábado e domingo, na Mala Voadora, e passa ainda por Paredes de Coura e por Viseu este mês e por Coimbra, Cercal do Alentejo, Lisboa e Braga em Junho. Regressa à cidade minhota em Outubro.