Mais de 300 mil crianças eram pobres em 2022. Destas, 80% não frequentam a creche
Programa Creche Feliz vai demorar “uns três ou quatro anos” a garantir universalidade de acesso, segundo a economista Susana Peralta, autora do relatório Portugal – Balanço Social de 2023.
Em 2022, 302 mil crianças e 416 mil pessoas com 65 ou mais anos eram pobres. Há mais: entre as crianças pobres, mais de oito em cada dez (82%) não frequentavam creche a tempo inteiro, isto é, pelo menos 30 horas por semana. “É uma constante nos dados e é um dos maiores falhanços do nosso Estado social”, resume a economista Susana Peralta, em declarações ao PÚBLICO, a propósito da publicação nesta quarta-feira do relatório Portugal – Balanço Social 2023, do qual é co-autora. O documento traça o retrato do país em aspectos como o rendimento, a privação material, as condições de habitação e o acesso à educação e à saúde.
Apesar de terem sido tomadas medidas governativas para que mais famílias possam beneficiar da gratuitidade das creches — o programa Creche Feliz avançou no sector social ainda em Setembro de 2022 e no privado já em 2023 —, Susana Peralta alerta que os dados a que o relatório se reporta (que tiveram por base a consulta do Inquérito às Condições de Vida e Rendimento de 2022 — ICOR 2022) ainda não reflectem essa mudança.
“Não é claro, mas certamente que este programa das creches gratuitas vai demorar até conseguir resolver este problema, talvez uns três ou quatro anos, e não é só pela disponibilidade de lugares nas creches”, elucida a economista, referindo-se também ao limite etário definido, que faz com que esta medida abranja apenas as crianças nascidas após 1 de Setembro de 2021. No caso das crianças não pobres, a proporção daquelas que não frequenta, pelo menos, 30 horas de creche desce para os 74%.
Ainda sobre este tema, o relatório dá conta de que, em 2023, “o aumento na prevalência da pobreza reflectiu-se em todos os grupos etários, principalmente entre as crianças”, uma das fatias da população mais vulnerável a situações de pobreza e exclusão social. A taxa de pobreza para este grupo aumentou 2,2 pontos percentuais face ao ano anterior, conforme tinha já demonstrado o inquérito do Instituto Nacional de Estatística (INE) aos rendimentos e condições de vida, realizado já em 2023, mas com base nos rendimentos do ano anterior.
Vários estudos demonstram que a escolaridade tem um papel importante na mitigação da transmissão intergeracional da pobreza. E o problema não está apenas no facto de quase oito em cada dez crianças pobres não terem acesso a creche: entre os quatro e os sete anos, os menores mais pobres são os que menos frequentam o ensino pré-escolar.
“As estruturas de cuidado formais, e depois o pré-escolar, são essenciais na construção do capital humano, das competências das crianças. E isso tem reflexos depois na sua escolaridade futura, tal como no mercado de trabalho”, sustenta Susana Peralta.
E sublinha: “Temos um problema de grande desigualdade em que a creche não chega a todos e chega a quem menos faz falta, digamos assim. Isto porque este tipo de desenvolvimento de competências cognitivas e não cognitivas que as creches proporcionam é mais essencial para crianças que vêm de meios desfavorecidos, que — enfim, por razões que têm que ver com a própria disponibilidade dos pais e com o nível de educação — teriam mais a beneficiar deste tipo de soluções.”
Pessoas pobres têm menos satisfação com a vida
Factores como a privação material e o acesso à saúde, assim como a manutenção de hábitos saudáveis também foram analisados. E, mais uma vez, os mais pobres surgem em desvantagem. A saúde e bem-estar, quer físico quer mental, continuam a depender de determinantes socioeconómicos: em 2022, 21,3% das pessoas pobres auto-avaliavam a sua saúde como má ou muito má, uma percentagem que baixa para os 11,6% na população não pobre.
E os hábitos de vida saudáveis também dão alertas importantes. A maioria das pessoas em risco de pobreza (quase 60%) indicava fazer pouco exercício físico, uma proporção quase 11 pontos percentuais acima da da população não pobre. Os pobres reportam também mais comummente consumir pouca fruta, ou legumes e saladas (6% e 7%, respectivamente).
Por outro lado, o consumo elevado de tabaco é mais significativo entre a população pobre (16,4%, em comparação com 15% entre os não pobres), tal como o consumo de bebidas alcoólicas (38,7% para os pobres, 32,4% para os não pobres).
Há ainda a assinalar que, no dia-a-dia, a população pobre demonstra maiores dificuldades quotidianas: 29% reportou dificuldades de visão (mais dez pontos percentuais que a população não pobre); 24% referiu dificuldades de memória ou concentração (mais 6,7 pontos percentuais que a população não pobre), e quase 15% disse ter dificuldades em ouvir ou caminhar.
A nível de bem-estar mental, o cenário não é melhor, com quase 16% das pessoas pobres a afirmarem sentir-se raramente felizes, 12,9% a reportar ter-se sentido sós e 8,3% ter-se sentido excluídas. Nos dois últimos casos, estas proporções são mais de duas vezes superiores entre os pobres em relação aos não pobres.
“Verificamos diferenças substanciais entre as pessoas pobres e não pobres, em todas estas dimensões. As pessoas pobres têm menos satisfação com a vida do que as pessoas não pobres e também uma maior probabilidade de ter dificuldade de visão, de caminhar, de concentração. E depois também temos os comportamentos conducentes a uma vida saudável, em que também se observa que as pessoas pobres têm atitudes menos saudáveis”, desenvolve Susana Peralta.
A população em risco de pobreza indica também mais frequentemente não ter participado em actividades lúdicas (quase 6%), e ter poucos encontros com familiares (11%) e com amigos (15%).
Há ainda que apontar que, quanto à situação macroeconómica no final de 2023, a inflação marcava as preocupações das pessoas. A saúde e a situação económica eram as outras duas vertentes às quais os indivíduos atribuíam uma importância elevada, com mais de 27% das pessoas que quase nunca têm dificuldades e mais de 38% das que têm dificuldades a apontá-las como prioridade.
Em 2023, como já tinha demonstrado o INE, a taxa de risco de pobreza subiu para os 17%, depois de em 2022 se ter fixado nos 16,4%. Em 2022, quatro em cada dez pessoas desempregadas eram pobres e uma em cada dez pessoas empregadas era pobre. E a taxa de risco de pobreza entre trabalhadores com contrato temporário foi quase três vezes maior face a quem tem contratos permanentes.