Um mapa global traçado por uma equipa internacional de cientistas mostra que, entre 1990 e 2019, houve um excesso de 153 mil mortes em cada estação quente que podem ser relacionadas com as ondas de calor, que se tornaram cada vez mais frequentes. Quase metade dos óbitos aconteceu na Ásia, embora a Europa seja o continente onde a taxa de mortalidade e a proporção de mortes devidas aos efeitos das ondas de calor no cômputo geral é mais significativa.
A taxa de mortalidade é um conceito mais comum e, neste caso, calcula o número de mortes relacionadas com ondas de calor no total dos óbitos, explicou ao Azul, por e-mail, Yuming Guo, professor de Saúde Ambiental Global e Bioestatísticas na Universidade de Monash (Melbourne, Austrália).
Já a proporção de mortes é um cálculo do peso das mortes que se devem às ondas de calor na população total. “Têm significados diferentes”, disse Yuming, que é o primeiro autor do artigo publicado online na revista Plos Medicine nesta terça-feira, o primeiro a desenhar um mapa da mortalidade relacionada com as ondas de calor ao longo das últimas três décadas, oa nível global.
Assim, apesar de 48,95% das 153.078 mortes em excesso detectadas durante o Verão (estação quente) se registarem na Ásia, e 31,56% na Europa, comparando populações os resultados dão-nos uma visão diferente.
Sul e Leste da Europa mais massacrados
Na Ásia houve 192 mortes por cada dez milhões de habitantes, enquanto na Europa a média foi de 655 mortes por cada dez milhões de habitantes, com especial incidência no Sul e no Leste do continente.
A proporção de mortes relacionáveis com as ondas de calor na Europa foi de 1,94% no período 1990-1999, e 2,10% entre 2010-2019, escreve a equipa de Yuming Guo. No caso da Ásia, no mesmo período, os óbitos devidos ao mesmo problema representaram 0,85% e 0,089%.
O relatório Lancet Countdown 2024 sobre a Europa, divulgado já esta semana, diz que as mortes relacionadas com o calor aumentaram na maior parte da Europa, com um aumento médio estimado de 17,2 mortes por 100.000 habitantes entre os períodos 2003-2012 e 2013-2022.
Neste estudo, foram usados dados de 750 locais, em 43 países ou regiões, que representam mais de 46% da população mundial e 75% do Produto Interno Bruto (PIB) global, explicam os investigadores.
Para se ter uma ideia do aquecimento global sofrido pela Terra nas últimas décadas, e que se julga estar a tornar as ondas de calor cada vez mais frequentes e intensas, entre 2013 e 2022, a temperatura global à superfície do planeta aumentou 1,14 graus Celsius, comparando com a que se estima ter sido no período 1850-1990, escrevem os cientistas. Dezanove dos 20 anos mais quentes desde 1880 ocorreram desde 2000, salienta a equipa.
Prevê-se ainda que a temperatura média do planeta possa subir entre 0,41 e 3,41 graus, até 2081-2100, acelerando ainda mais as alterações climáticas e os impactos que têm sobre a vida na Terra.
Portugal com mais de 600 mortes por ano
Segundo os dados desde estudo, Portugal esteve no “top 20” dos países mais afectados pelas ondas de calor: “Registaram-se 606 mortes por ano [por este motivo] entre 1990 e 2019”, contabilizou Yuming Guo, a pedido do Azul. Depois desdobrou os números: na década de 1990-1999, tivemos 593 mortes por ano e, de 2010 a 2019, 650 óbitos por ano. “Um aumento de 4,7%”, notou. É uma média acima do crescimento de todo o continente europeu, que foi de 4,08%.
Apesar de tudo, Portugal não está entre os países europeus mais afectados. Grécia, Malta e Itália tiveram a maior proporção de mortes relacionadas com ondas de calor durante este período de três décadas (entre 2,47% e 2,59%). Portugal teve 1,93% de 1990 a 2019, salientou Yuming Guo.
Para tornar comparáveis os dados de tantos países e regiões diferentes, em que os níveis de riqueza, ou a pirâmide etária da população, por exemplo, são tão variados, é necessário fazer ajustes nos cálculos estatísticos, padronizar os dados. A diferença é grande, quando se analisam os dados ajustados para levar em conta o envelhecimento de uma população específica ou se não se faz isso, salientou o cientista.
“Ajustámos para o envelhecimento da população na análise para remover esse impacto e tornar os resultados comparáveis. Depois de padronizarmos a estrutura populacional, a taxa de mortalidade (óbitos por dez milhões de habitantes são mais elevados em países de rendimentos baixos a médios). E a proporção de mortes é semelhante nos países mais pobres e nos países mais ricos”, explicou Yuming Guo.
Países ricos, países pobres
Estes ajustes podem produzir mudanças significativas. Em alguns países, por exemplo: quando os cientistas fizeram comparações ao nível nacional da taxa da mortalidade em excesso relacionada com as ondas de calor, a situação mais grave verificou-se na Ucrânia, Bulgária e Hungria. Mas, uma vez aplicados os métodos de padronização para o envelhecimento, Níger, Chade e Ucrânia eram as três nações onde o impacto era maior, descrevem.
Passou-se, aliás, algo curioso: quando se fazia a análise estatística da mortalidade devido às ondas de calor sem fazer os ajustes necessários para levar em conta o envelhecimento da população, os países mais ricos estavam entre os mais afectados, o que era algo contra a corrente. “Isto pode ter sido causado porque os países de rendimentos mais elevados têm uma maior percentagem de população mais idosa. Populações com mais idade são mais vulneráveis às ondas de calor”, salientou Yuming Guo.
O número de dias de ondas de calor pode também ser mais reduzido nos países mais pobres – muitos deles em zonas já mais quentes e mais secas, por exemplo.
A população global está a envelhecer a um ritmo aceleradíssimo. Espera-se que o número de pessoas com mais de 60 anos duplique, para chegar a 2100 milhões, até 2050, e mais de dois terços destas pessoas viverão em países de baixos e médios rendimentos, onde os efeitos das alterações climáticas se farão sentir de forma mais intensa, diz um outro estudo, da revista científica Nature Communications, também publicado nesta terça-feira.
Um desses efeitos é o aumento da duração e intensidade das ondas de calor, que têm consequências mais graves para os mais idosos, incluindo o agravamento de doenças crónicas. O risco de morte cresce não só devido aos efeitos do stress térmico em vários órgãos e funções corporais, devido à exaustão, golpes de calor e cãibras, bem como pode ainda potenciar problemas de saúde mental.
Alguma adaptação?
O estudo publicado na Plos Medicine concluiu que a proporção de mortes em excesso relacionadas com ondas de calor manteve-se sem modificações ao longo das três décadas em análise e as mortes por dez milhões de habitantes reduziram-se 7,2%. “Estes resultados sugerem a importância de considerar a adaptação ao calor, diferentes estruturas da população e outros factores demográficos para fazer a estimativa do impacto das doenças associadas aos episódios de temperaturas extremas nos estudos feitos num período longo”, escrevem os cientistas.
Quer isto dizer que se notam efeitos de adaptação às ondas de calor, que serão positivos?
“Não podemos determinar que isto seja um sinal positivo”, respondeu Yuming Guo. “Não podemos comparar directamente o número de mortes. Para entender se a população se adaptou ou não às ondas de calor, teríamos de comparar o risco relativo de mortalidade durante os dias em que há ondas de calor com os riscos dos dias em que não há...”, explicou.
Mas é possível pensar que houve alguma adaptação, porque a tendência durante o período de estudo foi para o aumento dos dias de ondas de calor e, ainda assim, a proporção de mortes não cresceu, “o que quer dizer que o risco relativo é mais baixo do que antes”, salientou.
“Podemos presumir que a população teve uma ligeira adaptação às ondas de calor, que pode ter a ver com desenvolvimentos socioeconómicos, mudanças comportamentais, avanços tecnológicos ou outros”, destacou Yuming Guo.