O papel que a União Europeia assume para a vida dos portugueses é muito mais do que os tão célebres programas de financiamento, mais do que a legislação em áreas como a economia, agricultura ou política ambiental (que representam cerca de 50% da legislação nacional) ou a plataforma de afirmação e desenvolvimento dos portugueses e da sua economia. É o elemento basilar da orientação e estabelecimento de uma nova era, o Portugal democrático.
A União Europeia, ao contrário do que algumas vozes pautadas pelos princípios irracionais da demagogia afirmam, não instrumentalizou Portugal em favor “próprio”. O que se efectivou foi, na sua perspectiva mais “radical”, o inverso. No período que sucedeu à Revolução dos Cravos, a União Europeia serviu de pilar para a estabilização nacional, consolidação democrática e redefinição estratégica da portugalidade. Entre o período que sucedeu o 25 de Abril de 1974 até ao período da integração portuguesa na então Comunidade Económica Europeia (CEE) registaram-se diversas dificuldades, algumas – caso a colaboração europeia não tivesse ocorrido – com capacidade de suscitar um retrocesso sociopolítico, dado a tamanha fragilidade social.
Registando-se uma profunda crise económica internacional, originada pelo Choque Petrolífero de 1973, uma grave crise política nacional, pautada pela conflitualidade e confronto armado, corroborada pelo complexo e impactante processo de descolonização e subsequente crise social (caso dos “retornados” e refugiados), e em coexistência com um árduo processo de transição democrática, Portugal encontrou na Comunidade Económica Europeia um espaço de construção em cooperação, no qual não se restringe ao pequeno e distante "jardim à beira-mar plantado", nas palavras de Tomás Ribeiro, mas se afirma como um Estado-membro do projecto europeu, com um posicionamento geoestratégico no Atlântico, correspondendo a um ponto de ligação entre a Europa, a América e África.
Refiro-me à actual União Europeia enquanto pilar para a estabilização nacional por motivos concretos, especialmente nos que se associam a matérias económicas e financeiras, ilustrado no caso da ajuda financeira (1975), no Protocolo Financeiro (1976) e outros tantos fenómenos, constantes e consecutivos, que culminaram na formalização do pedido de adesão à CEE em 1977. Quando atribuo ao projecto europeu a responsabilidade pela consolidação democrática refiro-o pelo cariz democrático da organização e dos seus integrantes (Estados-membros), hoje, um pré-requisito patente no Artigo 49.º do Tratado da União Europeia, a par do posicionamento europeu no período da Guerra Fria, que levou Portugal a estreitar as suas relações com as nações demo-liberais, que haviam sido suspensas ou reduzidas durante o período de isolamento internacional, iniciado na década de 1960.
O aspecto mais curioso desta relação entre Portugal e a actual União Europeia é a do papel que a mesma assumiu em matéria de portugalidade, naquilo que viria a ser considerado a identidade nacional, uma vez que ocorreu uma brutal mudança de paradigma social, político e estratégico. A identidade nacional de Portugal havia sido fruto de um profundo e bem executado trabalho da ditadura, especialmente de António Salazar e de António Ferro, enquanto dirigente do Secretariado da Propaganda Nacional (posterior Secretariado Nacional de Informação).
O predomínio da actuação política com base em valores imperialistas, conservadores, transcontinentais, nacionalistas e os princípios expostos no Decálogo de 1934 eram incompatíveis com a sociedade que se procurava desenhar e estabelecer no Portugal revolucionário. Com o término do período de exploração colonial, Portugal deparou-se com uma situação complexa de profunda redefinição, assumindo-se esta proximidade às “nações continentais” e o progressivo estreitar de laços com nações europeias, determinantes na criação de um Portugal mais humanista, solidário, europeísta, defensor de uma democracia liberal multipartidária, a par da própria alteração nos eixos geopolíticos e geoestratégicos que se fizeram sentir, ainda hoje evidentes nos vectores estratégicos ou linhas mestras da política externa portuguesa, a Construção Europeia, a Lusofonia (CPLP e PALOP), a Cooperação Atlântica e o Multilateralismo.
Considerando estas três dimensões referidas como suficiente para expor e fundamentar a essencialidade que a União Europeia possui na vida política nacional e na qualidade de vida dos cidadãos, gostaria de lamentar o facto de serem desconsideradas pelas vozes da demagogia e perpetuadas pelo desinteresse. Sendo a maior vítima desta desconsideração o papel embrionário que a União Europeia assumiu na consolidação de uma sociedade democrática, onde a pluralidade ideológica e as liberdades são constitucionalmente consagradas sendo, por isso, mais do que uma organização intergovernamental de carácter democrático, corresponde ao vaso e à terra, na qual as sementes da democracia portuguesa se desenvolveram e sobrevivem até aos dias de hoje.