É do nada que se ergue a utopia de Ivana Müller

Cinco performers ligados por cordas de escalada tomam o palco em Forces of Nature, esta sexta-feira, no Teatro Joaquim Benite, Almada, peça programada pela Transborda.

cultura,teatro-nacional-d-maria-ii,almada,culturaipsilon,danca,
Fotogaleria
Em Forces of Nature, os cinco performers estão ligados por cordas de escalada e na sua interdependência tentarão construir algo em conjunto alix boillot
cultura,teatro-nacional-d-maria-ii,almada,culturaipsilon,danca,
Fotogaleria
Forces of Nature, da coreógrafa Ivana Müller alix boillot
Ouça este artigo
00:00
04:31

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Quando Forces of Nature tem início, o palco está completamente vazio. Será também assim com muitas outras peças, é certo. Haverá em muitos outros casos esta intensa e poderosa ideia, que se anuncia de imediato, de tudo ser possível. Mais tarde, ao escutarmos um dos performers reconhecer que “há algo de muito atraente na ideia do vazio”, reforça-se a convicção de que, para a coreógrafa Ivana Müller, “o vazio tem um enorme potencial”. Sobretudo porque a dimensão utópica da criadora (nascida em Zagreb, formada em dança em Amesterdão e a viver em Paris) se alimenta da energia de novos princípios. Em Forces of Nature, esse vazio inicial dura pouco, mas é o espaço do qual emergirá uma construção colectiva e ao qual o palco será, no fim, devolvido. Como uma miragem, um sonho, uma sugestão de caminho que só acontece se, de facto, alguém – cada um de nós, e não os outros (sempre os outros) – o assumir.

O palco, esta sexta-feira, será o do Teatro Joaquim Benite, em Almada, numa apresentação programada na quarta edição da mostra de artes performativas Transborda. Um a um, os cinco intérpretes entram em cena e logo se percebe que vêm ligados por cordas de escalada. E vêm ligados de uma maneira em que os movimentos de cada um/a condicionam os de todos os outros. Se uma perna avança numa direcção, é possível que todos os restantes corpos tenham de integrar e acompanhar esse movimento. “O meu ponto de partida foi a ideia de interdependência”, explica Ivana Müller ao PÚBLICO. “Ao observar a forma como vivemos em sociedade e o funcionamento de humanos, mas também de outros seres vivos, comecei a pensar – como é usual nas minhas peças – sobre a noção e o lugar comuns, sobre o lugar do colectivo e da utopia.”

Em 2019, quando começou a preparar Forces of Nature, era já muito evidente para Müller que “várias e diferentes construções utópicas estavam a ruir, sob a fortíssima influência do neoliberalismo”. Foi essa certeza que a levou, desde logo, a perguntar-se “que forças agem sobre nós e nos fazem mexer”. Se, num primeiro momento, era sobretudo sobre forças mecânicas que reflectia, logo estendeu essa reflexão para “as forças sociais, emocionais e políticas”, e para o ponto em que essas forças se manifestam de formas “opressivas ou incómodas”. E depois, claro, quando agendou o início dos ensaios para Março de 2020, teve de travar a fundo de imediato e repensar como podia Forces of Nature avançar diante das forças pandémicas.

A propósito

Embora Ivana Müller esteja muito longe de ser uma coreógrafa focada apenas no corpo – já o tínhamos percebido com Conversations Out of Place, apresentada no D. Maria II em 2019 –, a deslocação da construção do espectáculo para o mundo online durante os confinamentos levou a que propusesse à sua equipa um método de trabalho inspirado por Decameron: se o livro de Boccaccio é composto pelos 100 contos narrados diariamente por um grupo de jovens que foge de Florença para escapar à peste negra, Müller convocou o grupo para reuniões matinais, durante as quais propunha temáticas para reflexão e sobre as quais deveriam escrever durante as horas seguintes, voltando a reunir-se ao final da tarde para partilharem os resultados. Começavam o dia à frente dos ecrãs, chávena de café na mão, acabavam a sorver um copo de vinho.

Em parte, é daí que vem a natureza palavrosa de Forces of Nature. Embora Ivana Müller reconheça que a maioria da sua obra se baseia numa lógica de conservação, aquilo a que assistimos nesta peça “é uma conversa que eles têm enquanto trabalham, com um certo sentido de ‘a-propósito’ – como quando estamos a cozinhar com alguém e começamos, ‘a propósito’ de qualquer coisa, a falar de coisas importantes, talvez sem olharmos para a outra pessoa, porque estamos concentradas nas tarefas que nos encontramos a realizar”. E, então, vêm à tona reflexões e questões profundas, só que num ambiente “relaxado, sem dramatizar”. Os performers falam de quererem gritar e não o fazerem há demasiado tempo, de ilhas imaginárias, de turistas e poluição, daquilo que querem ser na vida, de algo em movimento ser sempre preferível a algo em descanso, de zombies ou da partilha de bens essenciais, enquanto negoceiam movimentos e – vai-se tornando progressivamente mais claro – constroem algo juntos, a partir daquilo que os une (filosófica, política ou mesmo fisicamente, tendo em conta as cordas de escalada).

Numa espécie de reflexo humano – em que o vazio tem de ser conquistado e ocupado –, os cinco dedicam-se a essa construção colectiva, surpreendente, encontrando-se num propósito comum. Com a certeza de que, se um puxar na direcção errada, pode boicotar o grupo e tudo acabará por ruir. Mas também com a garantia de que, qualquer passo em falso será amparado pelos outros e a queda será evitada.

Sugerir correcção
Comentar