Crise climática pode reduzir malária na África Ocidental (mas há um lado mau)

Modelo que prevê como as alterações climáticas vão afectar a transmissão da malária indica declínio das regiões favoráveis à doença na África Ocidental, refere estudo da Science. Isto é bom?

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Criança com malária num centro de saúde no Sul do Sudão ADRIANE OHANESIAN / REUTERS
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Um novo modelo promete estimar quais são os locais do continente africano que se tornarão mais ou menos favoráveis à malária consoante a evolução da crise climática, revela um estudo publicado esta quinta-feira na revista científica Science. Os resultados mostram, por exemplo, um declínio acentuado das áreas propícias à doença na África Ocidental, da Gâmbia ao Sudão do Sul – o que, acreditem se quiser, não é uma boa notícia.

“Embora, à primeira vista, um declínio nas áreas propícias à malária possa parecer uma boa notícia, isto significa que o ambiente será demasiado quente ou demasiado seco (ou ambas as coisas) para que o parasita da malária [Plasmodium] sobreviva. A alteração da disponibilidade de água para beber ou para a agricultura pode ser, de facto, muito grave [para as pessoas que ali vivem]”, explica ao PÚBLICO Mark Smith, primeiro autor do estudo e professor da Universidade de Leeds, no Reino Unido.

Mark Smith recorda ainda que, se, por um lado, pode haver uma previsão de declínio da transmissão da malária em regiões africanas, também é verdade que há estimativas de crescimento da população no continente – e sobretudo ao longo das margens dos rios. O modelo proposto no estudo poderá abrir caminho para campanhas mais eficientes de controlo da doença no continente.

“Embora uma redução global do risco futuro de malária possa parecer uma boa notícia, tem um custo de redução da disponibilidade de água e um maior risco de outra doença importante, a dengue”, afirma o co-autor Simon Gosling, professor de Riscos Climáticos e Modelação Ambiental da Universidade de Nottingham, no Reino Unido, citado numa nota de imprensa.

O modelo apresentado no estudo da Science sugere que o mapa da malária terá novas fronteiras à medida que as temperaturas planetárias subirem e afectarem a disponibilidade de água no continente africano. Se algumas regiões ficam menos susceptíveis, outras, como as terras mais altas da Etiópia, passam a ficar mais expostas à doença tropical.

A malária é uma doença transmitida pelo mosquito do género Anopheles, um insecto que “aprecia” locais quentes e com espelhos de água. Em 2022, registaram-se 249 milhões de casos de malária, dos quais 608.000 resultaram em mortes. Cerca de 95% dos casos globais de malária ocorrem em África.

Incluir os rios na equação

Ao contrário dos modelos anteriores, que recorriam a valores totais de precipitação – ou seja, chuva – para calcular a presença de espelhos de água adequados à reprodução dos mosquitos que transmitem a malária, este modelo também tem em conta o comportamento dos rios em tempos de crise climática.

“Destacamos também o papel de cursos de água como o rio Zambeze na propagação da doença, estimando-se que quase quatro vezes mais população vive em zonas propícias à malária durante nove meses do ano do que se pensava anteriormente”, sublinha o primeiro autor.

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A malária é causada por cinco espécies de um parasita transportado por certos mosquitos fêmeas JIM GATHANY/CDC/REUTERS

O modelo apresentado no artigo da Science incorporou vários modelos climáticos e hidrológicos com o objectivo de avaliar processos fluviais reais de evaporação, infiltração e fluxo. Isto, porque, quando há precipitação, a água não fica necessariamente acumulada: pode haver absorção pelo solo, evaporação para a atmosfera ou escoamento. Estes fenómenos podem favorecer ou não a multiplicação do mosquito da malária.

“Os mosquitos precisam de águas superficiais para se reproduzirem e espalharem a malária. A ciência da hidrologia é agora capaz de fornecer informações sobre a disponibilidade desta água superficial. Existe um grande potencial para trabalhar em várias disciplinas e disponibilizar a hidrologia aos cientistas que estudam problemas de saúde globais, como a malária”, explica Mark Smith.

Mark Smith afirma que, neste trabalho, os autores mostraram que “o padrão e a magnitude das alterações estimadas que favorecem condições para a malária são diferentes quando se incluem directamente os fluxos de água”. “Somos os primeiros a aplicar um conjunto de modelos hidrológicos globais para prever condições favoráveis à transmissão da malária em toda a África”, afirma o cientista da Universidade de Leeds.

Melhorar intervenções de saúde

Estes resultados podem, no futuro, ser relevantes na elaboração de campanhas de saúde pública. Vejamos um exemplo hipotético: se sabemos que numa determinada região há um forte decréscimo na transmissão de malária porque os rios secaram, por exemplo, então podemos redireccionar a distribuição de mosquiteiros com insecticidas para outras áreas onde os modelos sugerem um aumento do número dos mosquitos Anopheles.

Mark Smith sublinha que este estudo constitui apenas “o primeiro passo” na criação de modelos cada vez mais sofisticados, capazes de melhorar as intervenções de saúde pública. No futuro, espera o cientista, talvez seja possível estimar a natureza de massas de água para prever o comportamento de espécies específicas de mosquito, o que ainda está muito longe de ser possível.

“Por exemplo: o insecto em causa pica os humanos de dia ou de noite? O modelo que apresentamos neste estudo é demasiado grosseiro para conseguir [dar uma resposta], mas, como disse, é um primeiro passo”, conclui o investigador britânico, numa resposta por email.