Tejo: barragens espanholas libertam água, mas voltam a prendê-la e isso reduz caudais em Portugal

Iberdrola vai instalar regime em ciclo fechado entre as barragens de Alcântara e Valdecanãs para aumentar a produção de energia eléctrica conforme “as necessidades de mercado”.

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Albufeira de Valdecañas. Bohonal de Ibor, Cáceres, Extremadura, Espanha GettyImages
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O regime de caudais ecológicos no rio Tejo volta a suscitar as apreensões de ambientalistas, de organizações sociais, culturais e autarquias locais “face ao risco” que pode vir a consumar-se com a instalação de um sistema de bombagem hidroeléctrica reversível nas barragens espanholas de Alcântara e Valdecañas”, concessionadas à Iberdrola. Em resposta ao PÚBLICO, o Ministério do Ambiente sublinha que a regularização na bacia do Tejo, tanto em Espanha como em Portugal, implica a definição de regimes de caudais ecológicos que garantam a manutenção das várias funções agregadas ao rio, nomeadamente o bom estado das massas de água.

Um conjunto de 25 organizações portuguesas e espanholas subscreveram a denúncia do proTEJO – Movimento pelo Tejo que foi enviada à Comissão Europeia, no dia 18 de Março. O documento expressa o receio de que o projecto venha a “limitar as afluências de água” no rio ibérico, em território português.

Posteriormente, a 18 de Abril, o movimento proTEJO “alertou”, através de carta aberta enviada a ministra do Ambiente e Energia (MAE), Maria da Graça Carvalho, para a “urgência de exigir” às autoridades espanholas a implementação de caudais ecológicos na barragem de Cedillo no rio Tejo.

Nessa carta, o movimento proTEJO admitia que a concretização do projecto da Iberdrola poderia vir a agravar “significativamente a disponibilidade e a variabilidade de caudais no rio Tejo” em consequência da restrição da água que flui para Portugal a partir de Espanha. E acrescenta “não ser de esperar mais do que o volume-limite de caudal mínimo de 2700hm3, e talvez mais uma gota, para cumprir formalmente a Convenção de Albufeira, à semelhança do que aconteceu nos poucos anos de seca que assolaram o rio Tejo”.

Assim, e tendo em conta que, de Espanha, tem chegado em média mais do dobro do caudal mínimo anual previsto na Convenção de Albufeira (cerca de 5500hm3), a carta aberta enviada para o MAE diz que “existe um risco de todos os anos hidrológicos passarem a ser anos de seca artificial”, com envio de apenas 2700hm3 de caudal mínimo anual.

O proTEJO já alertou e apelou aos municípios da bacia do Tejo, às suas comunidades intermunicipais (Lezíria do Tejo, Médio Tejo, Beira Baixa e Alto Alentejo) e a Área Metropolitana de Lisboa (AML), que tomem uma posição de responsabilidade exigindo aos governos de Portugal e Espanha a implementação de um regime de caudais ecológicos na barragem de Cedillo no rio Tejo.

Garantir as funções do rio

O PÚBLICO solicitou ao MAE um comentário ao teor da carta do proTEJO sobre o regime de caudais ecológicos no rio Tejo.

Fonte do MAE recordou que a Convenção de Albufeira acordada para a Cooperação, Protecção e o Aproveitamento Sustentável das Águas das Bacias Hidrográficas Luso-Espanholas “exige um regime de caudais, que obriga ao cumprimento de um volume mínimo anual, em linha com as disposições comunitárias e nacionais nesta matéria”. E, no caso da bacia do Tejo, “estabelece ainda um volume mínimo trimestral e semanal”.

A posição do MAE deixa claro que a regularização que actualmente se verifica na bacia do Tejo, tanto em Espanha como em Portugal, “implica a necessidade de definir regimes de caudais ecológicos (RCE) que permitam garantir a manutenção das várias funções agregadas ao rio, nomeadamente o bom estado das massas de água”. E explica que a zona de fronteira se caracteriza por um conjunto de três barragens em cascata – Cedillo, Fratel e Belver – e, nesse sentido, “o lançamento de caudais ecológicos deve ser reflectido na última barragem da cascata, através das afluências de montante”.

Comparativamente e reportando-se ao estado actual da bacia em território português, a tutela socorre-se dos dados da Agência Portuguesa do Ambiente (APA): “estão a ser lançados caudais ecológicos nas barragens de Castelo do Bode e Pracana", e conclui que, no quadro da convenção em vigor, “é realizado todo um trabalho contínuo de articulação (ao nível do planeamento, da gestão, da vigilância, dos alertas e da melhoria dos mecanismos de cumprimento do regime actual de caudais) e de adequação do regime de caudais ecológicos às exigências da Directiva-Quadro da Água”.

A APA alertou ainda que a implantação do projecto espanhol “poderia ser susceptível de provocar efeitos ambientais significativos em Portugal”. Para recolher mais informações, a APA notificou Espanha do interesse em participar no procedimento de Avaliação de Impacto Ambiental (AIA). Na resposta, as entidades espanholas garantem que o novo projecto “produzirá um impacto ambiental moderado”, e que os efeitos sobre a Rede Natura 2000 “podem ser minimizados”.

A proposta para a bacia do Tejo

A proposta que o movimento defende para a bacia hidrográfica do Tejo baseia-se no estabelecimento de caudais ecológicos regulares, contínuos e instantâneos, medidos em metros cúbicos por segundo (m3/s) para ano de seca, médio e húmido, respeitando a sazonalidade das estações do ano, ou seja, maiores no Inverno e no Outono e menores no Verão e na Primavera. Esta reivindicação pretende contrariar o critério seguido que é baseado em “caudais mínimos negociados política e administrativamente há 25 anos na Convenção de Albufeira sem que nunca se tenha concretizado o processo de transição para o regime de caudais ecológicos que essa mesma convenção prevê”.

O não-estabelecimento de caudais ecológicos, acrescenta a posição do proTEJO, “tem permitido uma extrema volatilidade dos caudais recebidos de Espanha que prejudica os ecossistemas e os usos da água”, nomeadamente os usos agrícolas e o “incumprimento da Directiva-Quadro da Água”.

O problema resulta da “grande volatilidade dos caudais de hora para hora e dia para dia permitida por caudais trimestrais”, que representam 37% do anual, e semanais, que são 12% do anual, anomalia que “prejudica ecossistemas e usos agrícolas e já causaram problemas de salinidade da água aos regantes de Vila Franca de Xira”, acrescenta o movimento.

No dia 25 de Abril, a implementação de um regime de caudais ecológicos no rio Tejo por negociação com Espanha foi defendida pelo professor Rodrigo Proença de Oliveira, do Instituto Superior Técnico (IST), responsável pelo estudo das disponibilidades hídricas de Portugal, em que se basearam os planos da bacia hidrográfica de 2022-2027.

Ao PÚBLICO, o docente sublinhou: o sistema reversível previsto para as barragens de Alcântara e Valdecañas já está instalado nas barragens portuguesas de Alqueva, do Tâmega, Aguieira e Raiva, e irá surgir “daqui a poucos anos” na estruturação dos sistemas hidroeléctricos espanhóis – “vão recorrer à energia fotovoltaica que é produzida em excesso” e devolver às barragens a água que foi turbinada para funcionar como uma espécie de pilha hídrica consoante as “necessidades de mercado”, como salienta a “Avaliação das Disponibilidades Hídricas Actuais e Futuras”, elaborada para o projecto da Iberdrola.

Funciona “parcialmente” em circuito fechado, lançando para montante um maior volume de água do que é enviado no presente, “aliviando os usos consuntivos [com vários usos, além da produção de energia eléctrica]”, refere Proença de Oliveira, frisando que a alteração irá certamente “agradar” aos agricultores espanhóis. Passam a ter acesso a mais água para o regadio e a pecuária, atenuando a tensão que existe entre os agricultores e a Iberdrola.

As consequências da instalação deste processo na barragem de Cedillo, instalada na fronteira, pode traduzir-se num menor volume de água para Portugal e na degradação dos ecossistemas ribeirinhos.

Autarcas preocupados

Preocupados com o funcionamento do sistema reversível nas duas barragens espanholas, os autarcas dos municípios de Castelo Branco, Idanha-a-Nova, Oleiros, Penamacor, Proença-a-Nova, Sertã, Vila de Rei e Vila Velha de Ródão defenderam e deliberaram na passada quinta-feira, 2 de Maio, ser “necessário e urgente o esclarecimento científico do regime de caudais ecológicos, em ambos os países, aplicáveis ao rio Tejo”.

A sua atenção centra-se na “mais do que provável redução do caudal do rio Tejo, a partir da barragem de Cedillo”, explicando que a utilização do sistema reversível “impõe uma cota de nível do plano de água nesta albufeira que viabilize a sua elevação e reaproveitamento”. Este funcionamento, acentuam os autarcas, permitirá uma utilização da água em ciclo fechado, “sem que a produção de energia em Alcântara signifique uma transferência de caudal sem retorno, para território português, com prejuízo, nesse caso, para as albufeiras portuguesas e para a estrutura ambiental associada ao rio, para jusante”.

Relativamente aos impactos transfronteiriços, o documento que faz a “Avaliação das Disponibilidades Hídricas Actuais e Futuras” observa que “foi detectada uma potencial afectação aos habitats de interesse comunitário (HIC) ribeirinhos presentes nas margens da albufeira de Cedillo”. Este cenário será uma “consequência da descida do nível da albufeira até à cota 100 durante a execução das obras (cinco meses durante a escavação exterior e construção de ensecadeiras para a instalação das tomadas de água inferiores, e outros cinco meses durante a remoção das ensecadeiras e limpeza do leito, em anos não consecutivos).