Mas as crianças, Senhor?

A família não pode continuar a ser o único lugar social onde a violência é legal. O “direito de correcção” jurisprudencial é ilegal.

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Em 2006, o Supremo Tribunal de Justiça disse (por unanimidade): «Na educação do ser humano justifica-se uma correcção moderada que pode incluir alguns castigos corporais ou outros. Será utópico pensar o contrário e cremos bem que estão postas de parte, no plano científico, as teorias que defendem a abstenção total deste tipo de castigos moderados». Por isso, «umas palmadas (sempre moderadas) no rabo fazem parte da educação. [...] Uma bofetada a quente não se pode considerar excessiva». Pelo contrário, «a abstenção do educador constituiria, ela sim, um negligenciar educativo».

A 20 de Fevereiro de 2024, a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora pronunciou-se no mesmo sentido (também por unanimidade). Disse a Relação: «A questão da amplitude e abrangência dos poderes/deveres parentais a que se reportam os artigos 1878.º e 1885.º do Código Civil está longe de ser pacífica», mas «só assume relevância criminal o castigo que, por se revelar desproporcionado e imoderado, ultrapassa o poder/dever de correção dos pais sobre os filhos socialmente aceite». Não era o caso objecto do recurso: «As condutas imputadas ao recorrente na sentença – consubstanciadas em chamar à sua filha de quatro anos “porca”, em dizer-lhe “vais levar nas trombas, porca” e em ter-lhe desferido uma bofetada, que não lhe deixou quaisquer marcas, quando a mesma saiu a correr de casa em direção à estrada [para ir ao encontro da avó] – passam os crivos da moderação e da proporcionalidade.» Com efeito, «estamos convencidos que o propósito que o recorrente visava alcançar com tais condutas era pedagógico e situava-se ainda dentro do dever de correção».

Por conseguinte, no entendimento da Relação, as referidas violências físicas e psicológicas exercidas sobre uma menina de quatro anos (num contexto de violência doméstica de que também a sua mãe era vítima), não atingiram o «limiar mínimo da dignidade penal”, e «o direito penal não pode ser colocado ao serviço da evolução das mentalidades no que diz respeito a questões pedagógicas».

Nos doutos acórdãos destes dois tribunais de recurso não se encontra referência alguma aos “direitos da criança” nem, portanto, à Convenção sobre os Direitos da Criança (Nações Unidas, 1989), que Portugal se obrigou a aplicar, e cujo valor central é a dignidade da criança como ser humano que não é propriedade de ninguém. Jurisprudência tão surpreendente, a este nível judicial, suscita questões de formação e competência de juízes e magistrados, incluindo a questão deontológica do primado do Direito aplicável sobre a mentalidade de quem o aplica.

A doutrina da licitude dos castigos corporais moderados, a título de educação, de origem anglo-saxónica (reasonable chastisement), entrou em refluxo irreversível a partir de fins dos anos 1950, designadamente através de iniciativas legislativas dos países nórdicos. Hoje, a sua administração é geralmente considerada como uma violação do Direito Internacional dos Direitos Humanos. A sua ilicitude tem sido afirmada por vários Comités das Nações Unidas, nomeadamente o Comité dos Direitos da Criança, pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e por tribunais superiores de vários países. Há toda uma corrente de jurisprudência, internacional e nacional, de tolerância zero em matéria de violência a título de educação.

As piores formas de violência para com as crianças já foram interditas em toda a parte e os castigos corporais também já foram totalmente ou parcialmente interditos em cerca de metade dos países do mundo. Não obstante, a sua aprovação ou tolerância subsiste nas tradições culturais e nas mentalidades pedagógicas.

A família não pode continuar a ser o único lugar social onde a violência é legal. O “direito de correcção” jurisprudencial é ilegal. Não há violências moderadas lícitas sobre um ser humano, muito menos sobre crianças. Em todo o caso, a ruptura do círculo vicioso da violência contra as crianças não é uma simples questão jurídica, nem apenas pedagógica, implica todos os factores da reprodução da violência entre os seres humanos.

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