O meu reino por um cavalo? Ou será um bife? Ou um morango fora de época?

Apesar de gerar emprego e impostos, acabamos por ficar com os impactos ambientais e sociais, o dinheiro nas mãos de alguns e os bens espalhados pelo mundo.

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O Parlamento Europeu, em fim de legislatura, tem apressado várias votações, entre as quais a recente retirada das salvaguardas ambientais que ainda resistiam na atual Política Agrícola Comum. Como se fossem as exigências ambientais a dificultar a vida aos agricultores, e não o facto de não se aplicar aos produtos agrícolas importados as mesmas exigências que aos produzidos na UE ou de muitos agricultores não serem sequer elegíveis para os apoios da PAC, que iriam melhorar a rentabilidade da sua atividade.

Estas salvaguardas, apesar de mínimas e já muito retalhadas, ainda permitiam manter algumas características das áreas agrícolas importantes para a proteção dos solos, das águas, dos próprios agricultores e da biodiversidade, que é essencial também para a nossa vida e para a própria produção agrícola.

Novo passo atrás no Pacto Ecológico Europeu, no seguimento da oposição furiosa (e por vezes irracional) à Lei do Restauro da Natureza, liderada em grande parte pelos grandes lobbies da industria agrícola, e dos inúmeros entraves para aprovar a regulamentação que reduziria a utilização de pesticidas, apesar dos impactos que estes produtos têm na saúde humana e na biodiversidade.

Desde tempos ancestrais, os seres humanos dependiam e viviam com a Natureza, e os vegetais certamente foram a base da dieta, embora a carne gradualmente tenha assumido maior relevância. Isso não impediu a nossa espécie de sobreviver, evoluir e tornar-se cada vez mais racional e inteligente.

Ao chegarmos ao século XX, a industrialização e as novas tecnologias criaram condições nunca antes existentes para o aproveitamento da terra, para a produção de alimento e para alterar drasticamente os nossos hábitos de consumo e a própria Natureza. E se Adão comia maçãs e o Popeye espinafres, a industrialização, urbanização e globalização trouxeram uma melhoria significativa das condições de vida de milhões de pessoas em todo o mundo, mas também o aumento do consumo de alimentos processados, fast food e dietas ricas em gordura, açúcar e sal, com graves consequências para a nossa saúde e do planeta. A agricultura tornou-se a principal causa da perda de biodiversidade no continente europeu.

Ao contrário dos outros seres vivos, a nossa maior inteligência foi ficando inversa à nossa capacidade de sobrevivência e de perpetuação da espécie. O ser humano (nos países mais industrializados) está mais interessado no consumo desenfreado e no lucro imediato do que na sustentabilidade a longo prazo para as futuras gerações. Depois de séculos em que a alimentação esteva ligada ao ciclo anual da natureza, com aproveitamento da melhor forma dos recursos existentes, atualmente a tecnologia e a industrialização permitem-nos produzir praticamente tudo, quando e onde quisermos. Mas, muitas vezes, infelizmente, com um custo ambiental e social muito elevado.

Nas últimas décadas, passamos a misturar alimentação, qualidade de vida e saúde com grandes lobbies económicos, consumismo desenfreado e estilos de vida desproporcionados em relação ao impacto que causam à nossa volta. Quem tem menos dinheiro é condicionado a comprar produtos processados de pior qualidade e com maior impacto na sua saúde e no ambiente. Com os apoios comunitários a fazerem chover dinheiro (água é que não), acabou-se por se subverter e intensificar os sistemas agrícolas e a nossa própria alimentação, com prejuízos para todos nós, agora e no futuro.

A PAC, no valor de 387 mil milhões de euros – um terço do orçamento total da UE para 2021 a 2027 –, é uma ferramenta incrivelmente poderosa que praticamente determina a realidade da agricultura europeia e, consequentemente, o estado da natureza na Europa. Os terrenos agrícolas representam quase metade de toda a área terrestre da UE, mas mais de 71% dessa área é dedicada à produção de carne e laticínios. A maior parte do que é produzido nem sequer nos alimenta: de 2018 a 2019, 62% dos cereais, 88% da soja e 53% das leguminosas ricas em proteínas foram destinados à alimentação animal, e 12% dos cereais foram utilizados na indústria e como biocombustível. Além disso, estima-se que 88 milhões de toneladas de alimentos sejam desperdiçados todos os anos na Europa! Que agricultura é esta que não alimenta diretamente as pessoas?!

Temos de apoiar outras formas de produção de alimento com menos impacto, reduzir o desperdício, apoiar a produção e o consumo locais e adaptados às condições ambientais locais (reduzindo transportes e com um maior controlo da qualidade da produção). Apoiar as populações em zonas rurais pagando a quem gere o território com retorno positivo para a sociedade, como a prevenção de incêndios, a recarga de aquíferos, a proteção de solo, ar e água, entre outras medidas positivas para a economia local e nacional. Contribuir para a melhoria da dieta e da saúde das populações retira peso do Serviço Nacional de Saúde. O premiado documentário nacional Carne: a pegada insustentável mostra bons exemplos em Portugal.

Pelo contrário, continuamos a enterrar (literalmente) milhões em barragens para segurar a água que não cai do céu, enquanto recusamos reduzir a quantidade de água que utilizamos; em estábulos intermináveis para encafuar animais maiores ou mais pequenos; em hectares a perder de vista de culturas superintensivas e estufas. E se é verdade que por cada oliveira em superintensivo ou estufa se gasta menos água agora do que antigamente, temos um aumento enorme das áreas dessas produções, consumindo portanto mais água no total do que antes, quando já temos cada vez menos água disponível para todos.

Abdicámos da nossa tradicional e altamente recomendável dieta mediterrânica, com base nos produtos da época e nos vegetais, para passarmos a ter uma produção dominada pela carne e alimentos processados, com grandes impactos na saúde e a nível social e ambiental.

Estes desequilíbrios acabam por ser perpetuados e reforçados por grandes lobbies e por forças mais tradicionais com representação nos governos e no Parlamento Europeu, que acabam por manter e dirigir os milhares de milhões da Política Agrícola Comum não para sistemas agrícolas que nos tragam mais qualidade de vida, saúde e melhor ambiente, mas perpetuando interesses e beneficiando quase sempre os agricultores e empresas com mais recursos, excluindo os mais pequenos.

Dados da União Europeia mostram que 80% dos milhares de milhões de euros da Política Agrícola Comum vão para apenas 20% dos seus beneficiários. Em Portugal, grande parte dos apoios comunitários acabam por ir para grandes proprietários e grandes empresas que têm capacidade de obter estes fundos e que investem fortemente na industrialização da agricultura, muitas vezes para exportação. Apesar de gerar emprego e impostos, em Portugal acabamos por ficar com os impactos ambientais e sociais, o dinheiro nas mãos de alguns e os bens espalhados pelo mundo.

Apesar do que dizem alguns políticos, o “radicalismo verde”, como foi recentemente apelidado, não é radical, mas sim racional, e não defende políticas ambientais apenas pelo gosto em ter mais aves ou flores, mas também porque essas políticas ambientais promovem uma diversificação de culturas e negócios, maior proteção do ambiente e da saúde, assim como uma distribuição mais justa e equilibrada dos fundos comunitários e nacionais entre os agricultores.

A constante tentativa de grupos políticos, em Portugal e na Europa, criarem um falso conflito do tipo “nós ou a Natureza” (na variante “mundo rural” contra todos os outros) foi o que nos trouxe a este momento atual da história da humanidade, em que, por muito que neguem, as alterações climáticas e a perda de biodiversidade já nos causam impactos tão graves. Pela primeira vez, previsivelmente, as futuras gerações irão ter uma qualidade de vida pior do que as gerações anteriores. Será um preço aceitável para ter bifes no prato em todas as refeições ou morangos o ano inteiro?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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