Tantos, tantos mil

E não tenho paciência. É verdade, aos 17 anos falta-me a paciência. Não tenho paciência que me digam que está tudo por fazer ou que não há nada a fazer. Porque não é verdade.

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Celeste Caeiro, a mulher que distribuiu os cravos aos militares da Revolução, nas comemorações do 50.º aniversário da Revolução dos Cravos que pôs fim ao regime autoritário do Estado Novo Rui Gaudêncio
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Quando eu nasci, o meu país vivia em liberdade há mais de três décadas. Quando eu nasci, as mulheres podiam votar, as crianças tinham tempo de ir à escola, os trabalhadores tinham permissão para fazer greve e os jornalistas eram livres de escrever, sem comissões de revisão que os censurassem. Não poderia dizer o mesmo se tivesse nascido uma ou duas décadas antes. Teria vivido, pelo menos a minha infância, é certo, num quadro de pobreza, opressão, injustiça e medo, incomparável com qualquer realidade do pós-25 de Abril.

É com profunda tristeza e intranquilidade que oiço algumas vozes, que embora não representem a maioria do povo português (é preciso frisar), falar das “desilusões de Abril”. Falar do que não se concretizou, do que não se cumpriu, falar exclusivamente do que falta fazer, e não do que tudo o que já conquistámos. E é enquanto jovem, e futura cidadã de pleno direito neste país, que me sinto entristecida por este diálogo, bafiento e ferrugento, cuja única intenção é semear o medo e a desesperança.

E não tenho paciência. É verdade, aos 17 anos falta-me a paciência. Não tenho paciência para as generalizações do “são todos os iguais”, ou para os fatalismos do “estamos perdidos”. Não tenho paciência que me digam que está tudo por fazer ou que não há nada a fazer. Porque não é verdade. Porque não estamos perdidos. Eu sei que não estou enganada. E como é que sei? Porque na quinta-feira, dia 25 de Abril de 2024, cinquentenário da “revolução mais bela do século XX” (como lhe chamou Rui Tavares), milhares de pessoas saíram à rua e, tal como eu, percorreram a Avenida da Liberdade de cravo na mão.

Milhares de pessoas que, tal como eu, descendo até ao Rossio, ia encontrando amigos e conhecidos, e dizendo com uma lágrima no canto do olho: “Isto este ano está mesmo cheio”. E a sensação de quem lá esteve é inigualável. Não era só a emoção, o entusiasmo, a esperança, a inquietação ou a paixão que se fazia sentir. Era o orgulho. É espantoso, mas porque mais que tentem, as vozes que assombram as conquistas daquela madrugada, não conseguem separar o povo português do extraordinário afecto, carinho e orgulho que nos liga, a todos, ao 25 de Abril.

Por isso não me digam que estamos perdidos. Não me digam que estamos sem rumo. Não me digam que está tudo mal. Não está tudo mal. E quando duvidarem disso, lembrem-se de quinta-feira. Lembrem-se das crianças em cima dos tanques, das floristas de cravo na mão, dos soldados sorridentes que cumprimentam as gentes que passam, das famílias inteiras, da comoção dos mais velhos, da alegria dos fotógrafos, da curiosidade dos estrangeiros, daqueles que vieram de longe, de muito longe, para se juntarem à festa. Como podemos nós estar condenados à fatalidade, como podemos nós estar perdidos, se são tantos, tantos mil, os que querem continuar Abril?

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