Está um dia de Verão em Carcavelos, o areal enche-se de banhistas, logo ali alinham-se pranchas, pela água vão sonhos e coreografias dos surfistas, tal como pela mesa da nossa esplanada. Mas, aqui, a nossa prancha é um livro e é nele que surfamos um imenso mar. André Carvalho, surfista-fotógrafo e mentor deste Salitre, já em terceiro volume, vai-nos apontando detalhes de todo este país à beira-mar. Na ondulação das páginas, e nos olhos de André, rebentam ondas, saltam surfistas. Sentimos nos dedos as imagens, cheiramos o óleo da impressão, e, à força do mar e da imaginação, sentimos realmente o salitre.
“Estávamos na pandemia e estava farto de fazer slideshows para o raio do Instagram”, diz André, mentor desta “paixão” e “aventura” (árdua, diga-se) que é produzir um livro em papel, “de capa dura, bom papel, boas fotografias, boa impressão”, para “eternizar” o “surf no seu estado puro”. Cresceu com a fotografia (o seu pai é o fotojornalista Luiz Carvalho), licenciou-se em design gráfico e, claro, fez e faz muito surf. Começaria a fotografar snowboad, depois a publicar em revistas de surf, foi o fotógrafo escolhido em 2014 para acompanhar Garrett McNamara, lançaria depois um livro de fotografia de viagens, Navegar é Preciso. Ficou o bichinho e o amor ao papel.
“Não acredito que o digital substitua esta eternidade”, diz André, 48 anos, num tempo em que as redes estão “inundadas por milhões de imagens de surf e mar”. Mas é tudo rápido demais. “Há aqui fotografias que têm de ser impressas para se apreciarem os detalhes”, defende, sendo também o paginador e designer do livro. Já não havendo revistas de surf em papel no país, esta busca da eternidade física do momento aparentemente fugaz levou-o a juntar um colectivo, que dá também pelo nome de Salitre, com grandes fotógrafos da área, “cada um com a sua personalidade”, e espalhados pelo país: ele, que vive pela Linha de Cascais, com saltos à costa alentejana, “o Breck [João Bracourt], que está no Algarve, o Pedro Mestre, pela Ericeira, o Hélio António na Nazaré, o Tó Mané [que se celebrizou mundialmente com uma grande onda de McNamara], pelo Porto. Mas, às vezes, entramos nas zonas uns dos outros”, sorri André.
As perspectivas de cada um também são diferentes. Se André anda sempre de olho nos surfistas, Hélio António, 45 anos, que se junta à conversa, é fascinado pela onda. Free surfer tornado fotógrafo, confessa-se obcecado pela “onda perfeita a quebrar com uma luz bonita, ambiente, contexto”. “O meu foco era simplesmente a onda, a minha fotografia partiu desse princípio”, diz. “O que quero captar é que quem veja aquela imagem pense ‘eu devia ter estado ali naquele dia’. É aquela sensação que tinha antigamente quando folheava uma revista, ‘eia, que onda do caraças, quem me dera tê-la surfado’”, remata.
Lembrando que muitos dos que compram o livro “nem são do surf, são pessoas com paixão pelo mar”, Hélio defende que “passar do digital para papel” é o derradeiro prazer: “Todos temos fotos a morrer nos discos rígidos, mas quando vai para impressão é o culminar do nosso trabalho.”
Cada volume do Salitre tem vindo a tornar-se um anuário, guardião de memórias do mar e do surf, das suas pessoas, da sua cultura, do seu estilo de vida. É “a única publicação de surf em papel em Portugal, e na Europa só há umas três”. Em 2021, saiu o primeiro volume sob o tema Salitre, seguiram-se a Liberdade e a Resiliência, cada qual com uma tiragem de 1700 exemplares.
A resiliência, no caso, já pós-pandemia, é tanto aplicada à vida do mar e da fotografia, como à da própria publicação. “Não tivemos patrocinador”, conta André, e isto numa altura em que os custos de produção “aumentaram drasticamente”, frustrado tanto pela falta de apoios como por algum desinteresse das gerações mais novas. “A geração com mais de 30 anos dá muito valor, mas a juventude vive dentro da bolha digital”, lamenta.
Mas não desistem: o quarto volume do Salitre é uma onda a crescer, com os fotógrafos do colectivo a registarem “a eternidade do olhar salgado”, que nos chegará pelo Outono, “contra ventos e marés”. Uma futura edição que, esperam, seja mais multimédia, com outros complementos à fotografia impressa: “Gostávamos de criar podcasts e que as fotos no livro tenham códigos QR: clicas e podes ouvir uma narrativa à volta da foto, uma conversa, ou ver um pequeno vídeo daquela onda.” Mas sempre com o livro impresso como pilar, porque neste Salitre as fotos são, mesmo, ondas nos nossos dedos e nos nossos olhos.