Abril na ciência

É urgente perceber que um compromisso ético e responsável com a ciência e o conhecimento tem de ir além de intenções e da liberdade formal. Tem de incluir fundos, emprego e previsibilidade.

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Não se produz conhecimento robusto sem liberdade, sobretudo a liberdade de poder ir contra as expectativas ou factos assumidos como verdadeiros. Não se faz ciência forçando a realidade a estar de acordo com ideologias, como o caso do “geneticista” soviético Lysenko tristemente demonstrou, ao tentar “educar” plantas a terem melhor comportamento agrícola (como se “educariam”, ou subjugariam, cidadãos) sob o beneplácito de Estaline, resultando em perdas de colheitas, fome e na perseguição feroz a quem apresentava factos que não lhe convinham.

Mas também é preciso ter em atenção que a realidade raramente se acomoda a narrativas simples. Por exemplo, se os Estados Unidos ultrapassaram a União Soviética na chamada “corrida ao espaço”, após a dianteira tomada pelos segundos com Iuri Gagarin a bordo do Vostok 1 em 1961, isso deveu-se muito ao recrutamento de cientistas nazis, com destaque para Wernher von Braun, o mentor da “bomba voadora” V-2, uma estratégia bélica muito à frente do seu tempo.

Não só membro do partido nazi, mas parte das SS, a importância estratégica de Von Braun para o conflito seguinte que se adivinhava, contra os então aliados soviéticos, foi imediatamente reconhecida pelos americanos. Protegido pelos Estados Unidos, Von Braun pode então trazer os seus múltiplos talentos, desenvolvidos durante o esforço de guerra alemão, para a indústria aeroespacial (e, por conseguinte, de defesa). O que prova que a ciência funciona em diferentes contextos independentemente das posições dos seus profissionais, e os seus resultados podem ser postos em prática ao serviço de diferentes propósitos.

Noutra perspetiva, se os nazis são muito justamente vilipendiados por terem feito experiências em seres humanos nos campos de concentração (nem todas cientificamente “ilógicas”, mas todas bárbaras), estudos muito bem pensados do ponto de vista científico, mas igualmente bárbaros, foram realizados em homens (negros) pelos serviços de Saúde Pública nos EUA entre 1932 e 1972, estudando a evolução da sífilis não tratada sem disso informar os participantes no estudo (as chamadas “Experiências de Tuskegee”).

Como digo aos meus alunos de Biologia Translacional e Biomedicina: a questão não é apenas revoltarmo-nos com o comportamento de cientistas de décadas passadas, e explicar o que foi feito para evitar este tipo de estudo. Importa pensarmos com igual (se não maior) firmeza no que fazemos hoje que pode ser legitimamente criticado décadas no futuro. E de que modo o conhecimento produzido pode ser utilizado para além dos contextos em que foi pensado.

Isto é tanto mais válido num mundo global de comunicações instantâneas e segredos cada vez mais decifráveis. No sentido em que, mesmo que não tenham os melhores e mais livres sistemas para explorar o desconhecido, governos autoritários não terão pejo em utilizar meios tecnológicos que outros desenvolveram para os seus próprios fins. Por exemplo, a profecia de que avanços técnico-científico-económicos inevitavelmente trariam alterações profundas à China está longe de se verificar, décadas depois de ter sido enunciada. Ou seja, a melhor ciência só se desenvolve com liberdade, mas não quer dizer que a sua aplicação resulte necessariamente em liberdade.

Sabendo perfeitamente onde estava no 25 de abril de 1974 (na Escola Primária dos Olivais, Coimbra), o que fiz (segui a multidão em delírio até à então sede da PIDE/DGS, hoje um hostel), e o que sabia na altura (nada), sempre que nestes 50 anos vi cerimónias comemorativas pensei onde é que eu poderia ter estado em 1974 se tivesse sido mais velho. Teria assumido os riscos de resistir ou acomodar-me-ia? Honestamente, não consigo responder.

Se optasse pela primeira hipótese, citaria certamente Aurélio Quintanilha ou Sílvio Lima, entre inúmeros académicos perseguidos da minha universidade. Se optasse pela segunda, talvez racionalizasse com a reforma de Veiga Simão o facto de o único Prémio Nobel científico português ter sido o de Egas Moniz (partilhado com o suíço Walter Rudolf Hess), em pleno Estado Novo, ou que o foneticista Armando de Lacerda (cujo trabalho hoje se recupera) montou um laboratório de referência mundial em Coimbra na mesma conjuntura.

Por isso é urgente perceber que um compromisso ético e responsável com a ciência e o conhecimento tem de ir além de intenções e da liberdade formal, embora estas sejam fundamentais. Tem de incluir fundos (que não apontem, à partida, numa dada direção), emprego estável e previsibilidade, para além de uma vigilância permanente. Sem isso não se é verdadeiramente livre. Não basta dizer que a liberdade é essencial, é preciso prová-lo todos os dias.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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