Alterações climáticas ameaçam tornar-se no motor da extinção das espécies
Estudo em que participam cientistas portugueses analisou efeitos da mudança do uso dos solos e aquecimento global na evolução da perda de biodiversidade até meados do século.
O avanço da agricultura, da pecuária, da urbanização, num mundo que tem cada vez mais seres humanos foi o principal motor do declínio da biodiversidade no nosso planeta durante o século XX. Mas um novo estudo em que participam vários cientistas portugueses concluiu que as alterações climáticas poderão tornar-se o principal factor de declínio da biodiversidade até meados do século XXI.
“Este trabalho é o maior esforço de modelação feito até à data do que está a acontecer à biodiversidade e aos serviços prestados pelos ecossistemas, envolvendo 13 equipas de investigadores à volta do mundo”, explicou ao Azul, por e-mail, Henrique Miguel Pereira, do Centro Alemão de Investigação Integrativa da Biodiversidade (iDiv), da Universidade Martin Luther de Halle-Wittenberg, e do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos (BIOPOLIS-CIBIO), da Universidade do Porto. É primeiro autor do artigo publicado nesta sexta-feira na revista Science.
A equipa procurou respostas para duas perguntas. A primeira foi “como é que o ritmo de perda de biodiversidade e de alterações nos serviços dos ecossistemas no passado recente se compara como o que pode vir a acontecer no futuro em diferentes cenários”? A segunda queria avaliar “como é que os impactos na biodiversidade da perda de habitat se comparam com os impactos das alterações climáticas”, explicou Henrique Miguel Pereira.
Antes de mais, a equipa concluiu que a biodiversidade global terá diminuído entre 2% e 11% durante o século XX (0,2% a 1,1% por década), devido apenas à perda de habitat, causada pela mudança no uso dos solos. Isto aponta para a perda de cerca de 200 mil espécies de seres vivos – se se assumir que a diversidade biológica da Terra é de nove milhões de espécies. “Esta estimativa é consistente com a perda provável de 1,2% das espécies documentada pela União Internacional para a Conservação da Natureza”, escrevem na Science.
Corrigir a incerteza
Para responder às perguntas que orientaram o seu trabalho, a equipa comparou os diferentes modelos de biodiversidade (oito) e de serviços dos ecossistemas (cinco) que existem, desenvolvidos por cientistas de diferentes institutos de investigação em todo o mundo. Por isso o artigo é assinado por cientistas de origens tão variadas como Portugal, Alemanha, Japão, Austrália, Holanda, Filipinas, Reino Unido ou Estados Unidos, entre outros.
“Esta comparação, a primeira deste género, permite-nos aferir qual é a incerteza dos modelos”, especificou Henrique Miguel Pereira. “Quando os resultados que diziam que em diferentes cenários as tendências eram diferentes para a biodiversidade no modelo X e no modelo Y, não sabíamos quanto dessa diferença se devia a uma representação da biosfera distinta entre os modelos e quanto se devia à diferença entre os cenários”, diz o cientista português. “Com esta análise conseguimos responder a esta pergunta pela primeira vez.”
A análise permite perceber que estes modelos podem ser utilizados pelos países para avaliar projecções de perda de biodiversidade – algo difícil de fazer apenas com “dados estatísticos”, destaca Henrique Miguel Pereira. Facilita a acção: “Também identificamos as áreas do mundo em que nas próximas décadas poderá haver maiores perdas de biodiversidade”.
América Central, Andes, Sudeste do Brasil, África Ocidental e Oriental, Madagáscar e Sudeste Asiático, Leste e Oeste da Austrália foram zonas onde a riqueza de espécies se reduziu muito durante o século XX, e a tendência deve agravar-se em algumas. Mas outras áreas vão começar a registar perdas de biodiversidade pela primeira vez, sobretudo nas regiões boreais, devido ao aumento da exploração florestal, e na Amazónia e na África Central, onde a maior pressão é conversão da selva em terrenos de pastagem.
Se se considerar apenas as alterações no uso do solo, algumas regiões podem registar um aumento da riqueza das espécies, devido ao abandono de terrenos agrícolas e redução da exploração florestal (Europa Ocidental, Norte da Ásia, América do Norte e extremo Sul da América, Austrália). “Mas este aumento limitado não é suficiente para melhorar de forma significativa a integridade da diversidade de espécies”, salientam os cientistas na Science.
Três cenários, uma surpresa
Para fazer a sua análise, os cientistas desenvolveram três cenários: o da “sustentabilidade global”, com alterações climáticas reduzidas e poucas alterações ao uso da terra; “rivalidade regional”, com alterações climáticas intermédias e grandes alterações no uso da terra; e “desenvolvimento à custa de combustíveis fósseis”, com fortes alterações climáticas e alterações moderadas no uso do solo.
Se forem consideradas apenas as alterações no uso do solo, espera-se que a taxa de perda de biodiversidade desacelere um pouco no cenário “sustentabilidade global”, ou continue ao mesmo ritmo, nos outros dois cenários.
Mas, quando são conjugados os efeitos da mudança do uso dos solos com os impactos das alterações climáticas, a perda de espécies acelera (0,92 a 5,1% por década, em comparação com 0,2% a 1,1% por década no século XX).
No entanto, se a concentração de gases com efeito de estufa na atmosfera estabilizar e o aquecimento global ficar limitado a dois graus, o que é o previsto pelo cenário “sustentabilidade global”, o declínio da biodiversidade pode ser 40% a 74% mais reduzido (dependendo da métrica) em 2050 do que no cenário “desenvolvimento à custa de combustíveis fósseis”, onde a acção climática é praticamente inexistente.
“O problema é que quando incorporamos nos modelos os impactos das alterações climáticas, verificamos que são tão grandes que excedem os ganhos obtidos com políticas que reduzam os impactos das alterações dos usos da terra”, destaca Henrique Miguel Pereira.
“Isto foi uma surpresa e é muito preocupante”, alerta o cientista português. “A menos que consigamos rapidamente reduzir as emissões de gases de efeito de estufa, não iremos atingir os objectivos de Kumming-Montreal”.
Previsões, mas não sentenças
O Acordo Global de Biodiversidade Kunming-Montreal, obtido em 2022, prevê que os países signatários da Convenção das Nações Unidas sobre a Diversidade Biológica consigam conter a extinção de espécies que se sabe estarem ameaçadas até 2050, e que a taxa de extinção de todas as espécies do planeta seja reduzida para menos dez vezes do que actualmente. Os serviços dos ecossistemas – os benefícios que a natureza presta aos seres humanos, como por exemplo, a madeira das florestas, ou peixe do mar de que nos alimentamos.
O cenário da “sustentabilidade global” chega perto de atingir estes objectivos de redução das extinções – mas apenas se forem considerados os efeitos da alteração do uso da terra. “Mesmo alterações climáticas modestas neste cenário levam a uma aceleração das extinções”, escreve a equipa de Henrique Miguel Pereira.
“Bem, do ponto de vista das alterações do uso da terra, o cenário da ‘sustentabilidade global’ é ainda completamente possível”, salienta o cientista português.
Há algum espaço para optimismo, diz a sua equipa. Mesmo no mais sustentável dos cenários avaliados não são aplicadas todas as políticas que poderiam proteger a biodiversidade nas próximas décadas, salienta um comunicado de imprensa sobre o artigo. Por exemplo, as medidas destinadas a aumentar a eficácia e a cobertura das áreas protegidas ou a renaturalização (rewilding) em grande escala não foram exploradas em nenhum dos cenários.
Por outro lado, há políticas que podem ser paus de dois bicos: a expansão dos biocombustíveis, uma componente do cenário de sustentabilidade analisado, pode contribuir para atenuar as alterações climáticas, mas pode simultaneamente reduzir os habitats das espécies e contribuir para a sua extinção.
Não estamos perante uma sentença. “O objectivo dos cenários de longo prazo não é prever o que vai acontecer”, afirma a co-autora Inês Martins, da Universidade de York (Reino Unido), citada no comunicado. “Pelo contrário, é compreender as alternativas, evitar as trajectórias que podem ser menos desejáveis e seleccionar as que têm resultados positivos”, salienta. É-nos apresentada uma escolha: “As trajectórias dependem das políticas que escolhemos e estas decisões são tomadas no dia-a-dia.”
O que pode mudar
Embora esta comparação tenha permitido avaliar o grau de incerteza dos modelos, não a eliminou totalmente. “Temos ainda alguma incerteza na comparação dos impactos das alterações do uso do solo e das alterações climáticas. A forma como os mecanismos desses dois tipos de impacto é modelada é fundamentalmente diferente”, adianta Henrique Miguel Pereira.
Os impactos das alterações de uso de solo baseiam-se em estudos que nos dizem o que é acontece às espécies quando há uma conversão do seu habitat. “Já os impactos de alterações climáticas são extrapolados a partir de inferências dos nichos bioclimáticos das espécies. Isto é, sabemos que as espécies neste momento ocorrem em determinadas condições climáticas e, com base nas condições climáticas futuras, estimamos o que pode vir a acontecer”, explicou, resumidamente, o cientista português.
“Uma outra forma de dizer isto é que os impactos das alterações do uso do solo são estimados a partir de estudos que dizem o que é que já aconteceu em transições semelhantes, enquanto os impactos das alterações climáticas se baseiam em estimativas do que poderá vir a acontecer”, expõe.
Factores que não foram levados em conta nesta análise, como a migração de espécies, podem alterar os resultados. “Fizemos esta análise para um dos modelos: quando a possibilidade de migração sem limitações é incluída, os impactos das alterações climáticas para o cenário em que a subida de temperaturas não excede os dois graus é inferior aos impactos das alterações do uso do solo”, nota Henrique Miguel Pereira.