Críticos de elites e políticos, portugueses querem tomar “decisões mais importantes” por referendo

As atitudes anti-sistema estão disseminadas por todo o espectro político. Maioria defende que sejam os cidadãos, e não os políticos eleitos, a tomar as decisões mais importantes para o país.

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A grande maioria dos inquiridos considera que “os políticos eleitos falam muito, mas fazem pouco” Daniel Rocha
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Nunca conhecemos a democracia de outra forma: representativa, sustentada em partidos políticos e deputados eleitos sentados em semicírculo na Assembleia da República. Cinquenta anos depois do 25 de Abril, mais de metade dos portugueses (70%) quer que sejam os cidadãos comuns, através de referendos, a tomar as decisões mais importantes para o país. A esmagadora maioria também é muitíssimo crítica” dos políticos: mais de 80% consideram que “as elites defendem apenas os seus privilégios e regalias”, “são muitas vezes desonestos e corruptos” e “falam muito mas fazem pouco”.

Apesar de continuarem a escolher a democracia a qualquer outra forma governativa, sem muitas dúvidas e apesar dos defeitos que também lhe apontam, os portugueses “estão descontentes com o seu desempenho”, explica Manuel Meirinho Martins, um dos coordenadores do projecto de investigação 50 anos de Democracia em Portugal: Aspirações e Práticas Democráticas – Continuidades de Mudanças Geracionais (ISCSP/CAPP).

A terceira parte do inquérito do projecto do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, de que o PÚBLICO é parceiro, mede a adesão a diferentes atitudes populistas entre os eleitores, desde as anti-sistema (muito populares) às anti-imigração (residuais).

O conceito de populismo não é consensual, há quase tantas definições como académicos que estudaram a doutrina. A abordagem que os investigadores adoptaram define-o como​ uma ideologia que divide a sociedade em dois pólos o “povo puro” e a “elite corrupta” e defende que deve ser a vontade geral do povo a ditar a política. Os portugueses, de forma geral, alinham-se com essa ideia — e os partidos da direita radical exploram-na.

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Manuel Meirinho Martins lembra que o profundo descontentamento e insatisfação com a classe política não é de agora”, é aliás “um fenómeno estruturante da democracia portuguesa”. A grande maioria dos inquiridos (86,7%) considera que os partidos e os políticos defendem os próprios privilégios e 82,1% acham que a classe política é “muitas vezes desonesta e corrupta, lesando o interesse colectivo em benefício próprio​”. O investigador e ex-deputado do PSD explica que é também por isso que vários partidos populistas falam de uma “purificação dos actores políticos”, colocando-se como hipótese única, “redentora de um sistema político em colapso”.​

Apesar de as eleições legislativas de 10 de Março terem sido as mais participadas desde 1995, a maioria dos portugueses não acredita no processo democrático representativo como o conhece: 70% são favoráveis à ideia de dar “às pessoas” o poder de “tomar as decisões mais importantes para o país, através de referendos. Ter o “povo” como “entidade moralmente superior” é um dos traços comuns do populismo, segundo a definição utilizada no estudo, e funciona como reafirmação da “luta” entre pessoas comuns e elites políticas.

Antielitistas, pró-imigração

A distribuição das atitudes anti-sistema e antielitistas pelo espectro político é uma prova da sua disseminação: é de tal modo elevada que a adesão no bloco central representa 76%, seguido da extrema-direita com 17%. É por ser tão consensual que “os resultados eleitorais no espectro que mais cavalga o populismo – o Chega – conseguem esse nível [de percentagem de votos nas eleições legislativas]”, conclui Manuel Meirinho Martins.

Já a retórica anti-imigração, que faz parte de todos os discursos dos partidos populistas de direita radical na Europa, continua a ser “bastante minoritária e residual”, refere o coordenador do estudo: 17% dos portugueses acreditam que a presença de imigrantes e refugiados é uma desvantagem em termos económicos, sociais e culturais para o progresso do país.

Em Novembro de 2023, um estudo concluiu que os movimentos anti-imigração em Portugal estão “cada vez mais organizados”. No início de 2024, um grupo neonazi convocou uma manifestação “contra a islamização da Europa”, no Martim Moniz, em Lisboa — acabou por acontecer mas entre o Largo Camões e a Praça do Município. Já em Abril, no Porto, uma manifestação anti-imigração, convocada pelo Grupo 1143, liderado pelo conhecido militante de extrema-direita Mário Machado, chocou contra uma manifestação antifascismo.

Portugal é “uma democracia em consolidação”, não há um alinhamento com visões antipluralistas, diz Manuel Meirinho Martins. Os portugueses não são contra o sistema político em si e acreditam na pluralidade de opiniões: só 3,7% consideram que “não é importante fazer compromissos entre diferentes opiniões e pontos de vista”.

Quanto à inclusão de minorias na vida política do país – altamente contestada pela extrema-direita, que as vê como “elementos estranhos que desafiam a identidade e os valores tradicionais” –, apenas 3% admitem a ideia de que “não é importante ouvir grupos minoritários”.

Os portugueses que mais aderem a atitudes populistas são adultos com baixo nível de escolaridade, têm entre os 35 e os 64 anos, vivem em grandes vilas ou cidades, estão desempregados e lidam com fracas condições económicas. Acreditam mais do que qualquer outra franja da população que os políticos são corruptos, que só defendem os seus privilégios e que “falam muito, mas fazem pouco”. Apesar de a dimensão anti-imigração ser “minoritária” em toda a população, é dentro do mesmo grupo de pessoas que é mais popular.

Quem concorda com estas atitudes tende a olhar para os políticos não só como distantes dos cidadãos comuns, como também desligados das preocupações e interesses de quem os elegeu. Ao analisar o sistema político, não acreditam nas instituições que o edificam, estão insatisfeitos com o funcionamento da democracia e com a situação económica do país. Mais de 70% revelam exposição a informação política, tanto nos meios tradicionais como através das redes sociais. O coordenador do estudo afirma que o acumular de “casos e casinhos” gera uma maior desconfiança no eleitorado.

Jovens confiam menos nos políticos e são menos anti-imigração

Os jovens têm fama de contestatários, mas aqui as conclusões são diferentes. Alinham-se na visão anti-sistema e antielitismo e confiam ainda menos nos políticos: 85% consideram que os “políticos deveriam seguir sempre a vontade do povo” e 72% acham que as decisões mais importantes para o país deveriam passar directamente para as mãos dos cidadãos. Estes dados mostram o que já tinha sido confirmado na população em geral: esta retórica populista está fortemente enraizada”, reitera Manuel Meirinho Martins.

É na imigração que os jovens entre os 16 e os 34 anos mais diferem da restante população, ainda que apenas em quatro pontos percentuais. Só 12,9% consideram que imigrantes e refugiados são uma desvantagem para o país, contra os 17% na contagem geral.

Nota: ​O PÚBLICO é parceiro do ISCSP-ULisboa no projecto "50 Anos de Democracia em Portugal: Aspirações e Práticas Democráticas – Continuidades de Mudanças Geracionais (ISCSP/CAPP, coordenação de Manuel Meirinho, Conceição Pequito e Pedro Fonseca)" e publicará ao longo de 2024 vários artigos sobre os resultados do inquérito nacional realizado no âmbito do projecto.

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