Olhando pela janela

São instantes que nos excedem e que não são tomados pelo tempo, porque vivem de algo diferente, do seu valor e não da sua durabilidade.

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Olhando pela janela, sentados lado a lado ao som da chuva. Nós os dois, disse o Calvo, somos seres demasiado divergentes (clarão dum relâmpago). Só assim, disse a Alexandra, se pode convergir (ribombar dum trovão). Se calhar, senhor Calvo, disse a Alexandra, o melhor que tem a fazer é evitar palavras demasiado gastas em arrufos eternos, esqueça o vocábulo “Deus”, fique apenas com o maravilhamento ou a noção de eternidade ou o conceito de absoluto, ou com a Natureza (clarão dum relâmpago), que era a definição de Espinosa (ribombar dum trovão), e tente, como contabilista, contabilizar a alma humana e verá que não há números que cheguem, somos incontabilizáveis e é nesse lugar de incontabilidade que convergimos com o estranho vocábulo em que o senhor não acredita. É tudo vão, disso o Calvo, nada perdura, tudo se desfaz em água como a boneca de papel da São. Eu acredito tanto no futuro como acredito nesse pequeno e ingénuo vocábulo em que a Alexandra acredita, com quem fala e reza, a quem se ajoelha. “Acabei de perder o gosto pela vida, pois tudo o que tive de passar neste mundo era demasiado duro para mim. Sim, tudo é ilusão. E correr atrás do vento.”​ O nada vence tudo e não existe nada no vocábulo que invoca, é tão oco como o nosso futuro, apenas mais uma ilusão. Fico feliz, disse ela, que tenha, para corroborar a sua descrença tão amarga, citado a Bíblia, nesse tom de Job, aproveito pois o balanço para o informar que tem uma nuvem de anjos a esvoaçar por cima da sua cabeça. Procuram, perguntou ele, a companhia de incréus? Procuram, disse ela, quem mais precisa (clarão dum relâmpago). Há instantes, continuou a Alexandra (ribombar dum trovão), que têm um tempo próprio, perpendicular ao tempo comum, em sincronia em vez de diacronia. Não seguem a eito, sobem, como uma árvore. São instantes que nos excedem e que não são tomados pelo tempo, porque vivem de algo diferente, do seu valor e não da sua durabilidade. São esses que se perpetuam, o resto é como diz, desfaz-se em água como uma boneca de papel. E o que faremos com isso?, perguntou o Calvo. Tenho, respondeu ela, um projecto bastante razoável para o nosso futuro. Qual?, perguntou o Calvo. Envelhecermos, respondeu ela.

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