Ainda temos o amanhã?

Com o crescimento do radicalismo, e a diminuição da representação parlamentar de mulheres talvez seja importante questionar-nos se, de facto, ainda temos o amanhã.

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Ainda temos o amanhã? é uma comédia romântica, a preto e branco embebida de crítica social apresentada de forma leve e cómica, no seio de uma família italiana pobre, evidencia a importância hoje, da realidade do século passado. A protagonista, Délia, é mãe de três filhos, que vive o seu dia-a-dia num frenesim entre quatro biscates – remendar roupa, produzir guarda-chuvas, administrar injeções de insulina e lavar/secar roupa de cama — para conseguir algum dinheiro, que entrega ao seu marido, dono de (quase) todas as suas decisões.

Ao longo do filme, vítima de violência doméstica gratuita (que “desculpa” porque o marido “lutou em duas guerras”) e assédio por parte do sogro acamado, Dé’ projeta as suas ambições na sua filha mais velha, Marciella, prometida a casar-se com um “verdadeiro cavalheiro”, Giulio Moretti, cuja família é dona de um café na vila. Esta união promete retirar Dé’ e a sua família da pobreza.

Esta promessa é rapidamente destruída pelo comportamento de Giulio — Dé revê os comportamentos do seu marido no início da sua relação. Com expectativas frustradas e amores que ficaram no passado, Dé’ parece pensar em fugir, deixa de entregar todos os lucros que obtém ao seu marido e, acusada pela filha de “nunca fazer nada”, engendra, com a ajuda de um soldado americano, a destruição do café dos Moretti, evitando que a sua filha tenha um destino igual ao seu.

Dé’ recebe uma carta que parece prometer um futuro novo, uma saída da situação de violência e impotência em que se encontra. Numa manhã de domingo, deixa as suas poupanças a Marciella, para que possa estudar e ter um destino diferente do seu, veste a sua nova camisa e dirige-se para a sua salvação: as urnas.

O que é particularmente relevante neste filme, engenhosamente construído em torno desta narrativa, é que, até este momento final, o espectador é levado a acreditar que a motivação de Dé’ nessa manhã de domingo reside em fugir com outro homem, que o reencontrar da sua liberdade está num amor do passado. Mas não, o que verdadeiramente a move naquele dia é a possibilidade de ter uma voz no seu futuro, a possibilidade de participar ativamente na evolução da sociedade, que a escuda das agressões do seu marido.

No dia 2 de junho de 1946, as mulheres votaram pela primeira vez em Itália, com uma participação de 89%. Instruídas a limpar o batom antes de selar o boletim de voto, milhões de mulheres apresentaram-se a participar no seu futuro. Em Portugal, em 2024, sai às bancas o livro Identidade e Família do Movimento de Ação Ética, apresentado por Pedro Passos Coelho. Um livro que no século XXI defende os valores da “família tradicional” e a alerta para a perigosidade da “identidade de género”. Um movimento que pretende criar o “estatuto de dona de casa”, um livro escrito por vários autores, entre eles Paulo Otero, que defende que as mulheres nunca poderiam ter sido discriminadas, porque, afinal, sempre representaram a maioria da população, um autor que coloca o ónus do trabalho afetivo na maternidade porque “há coisas que só as mulheres podem fazer”.

Em Portugal, em 2024, dados relativos ao ano anterior divulgados pela Direção-Geral da Política e Justiça apontam para o aumento da criminalidade. Um dos crimes que mais mata em Portugal é a violência doméstica, que continua a ser o mais praticado (26.041) resultando em 30 mortes em 2023. Em Portugal, em 2024, as mulheres continuam a ganhar menos do que os homens, dado especialmente expressivo entre os jovens, faixa etária em que a diferença chega aos 238 euros por mês. Porque as mulheres escolhem profissões menos remuneradas? Mas se as mulheres são progressivamente as mais instruídas, representando a maioria dos que acedem ao ensino superior, como se pode explicar esta diferença? Na passada quinta-feira, aprovou-se no Parlamento Europeu a introdução do direito ao aborto na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, com a qual Luís Montenegro não concorda.

Com o crescimento do radicalismo, e a diminuição da representação parlamentar de mulheres talvez seja importante questionar-nos se, de facto, ainda temos o amanhã.

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