Abril, Abri-l, Abriu

Abril foi a ponte para a nossa libertação total. Até aquele dia, tudo era fechado sobre si. De tal modo que Abril chegou a Cabo Verde a 1 de Maio, ou seja, com uma semana de atraso.

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A vantagem da democracia sobre a ditadura é que naquela o fascismo pode existir, enquanto na outra, só este tem lugar. Para mim, dentro da democracia, é normal que certas pessoas digam que nada têm que ver com o 25 de Abril; aliás, dizem pior, não querem saber do que nunca devia ter existido. É democracia. O que não podem é tirar-me a minha parte e o direito de dizer que o 25 de abril mudou a minha vida exponencialmente para melhor.

Em crioulo de Cabo Verde, língua de base lexical portuguesa, Abri-l é verbo, como no início, e significa que alguém abriu algo. Por exemplo, seguindo as tradições orais chuviscadas de parábolas, algum cravo das mãos de Deus terá aberto como janelas ou bandeiras escancaradas a Liberdade; mas, também, Abri-l significa que (assim o contaria um velho sentado no poial às cinco da tarde), a mesma flor, ou a mesma mão, pegou o mês e abriu-o à Liberdade, ou para a Liberdade; ou, ainda, abriu-o ao meio, ou por completo (como diríamos em crioulo, é abril-l dentul meio intero). Já no Brasil, onde a língua portuguesa é falada em crioulo, o mês é Abriu. Abriu e ponto floral. Gosto particularmente quando a língua de Camões batuca e cutuca sozinha.

Para nós, que temos o português como língua-pai, Abril foi o divisor de águas. Até àquele dia 25, tínhamos cinco séculos de História em comum. Isso ninguém nos pode tirar, precisamente porque ninguém no-la deu, construímo-la juntos, a História, mas, infelizmente, não na mesma trincheira ou patamar, mesmo sabendo que, muitas vezes, estivemos na mesma prisão, ou no mesmo quartel.

A partir do dia 26, a História já é outra. No máximo, e no mínimo, passámos a ter uma História partilhada.

Comum é aquilo que não é divisível; ou melhor, aquilo que tem a natureza do inseparável. A partilha, em oposição, provém da vontade, da nossa vontade de dividir o que é meu, ou seu. Parecem iguais, mas não são a mesma coisa: a partilha é circunstancial; o comum é perene.

Sobre o que é comum, devemos conversar sempre, ouvir as opiniões, os pontos de vista díspares, as versões de cada protagonista e conviver inclusive com aquilo que ainda nos dói ou nos incomoda. Tem de haver diálogos. Doa a quem doer. No trocadilho das ilhas, nós dizemos que só doa quem tem para doar, portanto, não é para doer que falamos, mas para expurgar a dor, a dor da Escravatura, do Colonialismo, do Racismo, da Xenofobia, de histórias mal contadas e de assuntos mal resolvidos. Na Liberdade, não temos de pedir permissão vertical a ninguém para nos expressarmos. Na Liberdade, nada dói, senão a consciência. Temo hoje a grande dificuldade em achar quem queira escutar a nossa história comum contada pela voz do oprimido, sem o papaguear das narrativas que nos inculcaram na escola. Tem de haver catarse histórica. Isso só nos faria bem. Falar e escutar são as terapias da História. Tenhamos a clareza de que é muito difícil, de repente, falar, depois de séculos de silenciamento; e tenhamos virtude para aceitar que deve ser ainda mais difícil ouvir, depois de séculos de só falar. Mas, saibamos, não temos outro caminho senão o falar sem ódio e o escutar sem medo, porque a hipocrisia pode ser uma doença fatal para a História, para as novas relações que queremos construir na amizade, no respeito, na ajuda mútua, na democracia, na liberdade e na pluralidade.

Abril é comum para quem o quer. De certo modo, Abril foi a ponte para a nossa libertação total. Olhem, até aquele dia, tudo era fechado sobre si. De tal modo que Abril chegou a Cabo Verde em Maio, mais precisamente no dia 1 de Maio, ou seja, com uma semana de atraso. Contudo, chegou. Como diriam os brasileiros, Abril chegou chegando. Mesmo assim, tiveram de o levar em camiões para o Tarrafal. Aqui, onde eu nasci, não sabíamos nada, de nada, ninguém, de ninguém: o silêncio era o tempo de ser. Quando o reboliço desceu como cheias de Setembro da cidade da Praia e foi encostar-se à porta do Campo de Concentração do Tarrafal, e ali especou-se como um redemoinho de arco-íris, eu estava lá pequenote a assistir à maravilha: um senhor chamado Sana Peppers (amante ferrenho dos Beatles, tanto que, como se o nome já não bastasse, pôs ao filho John Lennon Fontes), com sua harmónica travada ao pescoço e cravada sobre os ombros, espalhava no ar a orvalhada de pétalas melódicas. Esta seria eternamente a minha imagem de Abril, da Revolução Que Chegou Com Uma Semana de Atraso, mas triunfalmente a tempo de livrar das grades os últimos prisioneiros políticos (angolanos e cabo-verdianos; os portugueses deixaram a prisão em 1953; os guineenses em 1969).

Abril para nós é verde, e Maio, maduro, porque, num arquipélago seco a morrer de fome, a forma como os meses se encadearam foi bonançosa. Tanto que, catorze meses depois, Junho chegou a Moçambique, Julho a Cabo Verde e a São Tomé e Príncipe, Novembro a Angola. As viagens dos meses são em espiral, como saias de dançadeiras. Abril não caiu do céu, ele foi parido sete meses antes na Guiné.

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