A existência implausível
Perante este lugarejo fétido a que chamam Criação, porque não colocar a hipótese mais adequada, a de um Deus vil e tresloucado?
Não a consigo perceber, a si e a todos os crentes, que estando cercados de iniquidade, de miséria, de guerras, acreditam num Deus absolutamente bom. Eu, disse o Calvo, sentir-me-ia muito mais inclinado a acreditar, se é para acreditar em alguma coisa, num Deus absolutamente mau. Está assim, pensou a Alexandra, áspero e azedo, por causa da Ana, porque a ansiedade o consome, porque teme o pior. Perante a vida, continuou o Calvo, perante este lugarejo fétido a que chamam Criação, porque não colocar a hipótese mais adequada, a de um Deus vil e tresloucado? É pertinente, disse a Alexandra, a sua questão, mas essa existência seria bem mais implausível do que a existência de um Deus bom. Um Deus mau permitiria a possibilidade de as suas criaturas escolherem o bem? Sendo mau, absolutamente mau, não creio, seria antes uma espécie de ditador, aquele que impediria a liberdade de escolher, constrangendo absolutamente. Mas o Deus bom, se fizesse o mesmo, isto é, se só autorizasse a bondade, não permitiria criaturas livres, mas objectos mecânicos e, nesse caso, não seria muito diferente do Deus mau. As suas criaturas não poderiam jamais ser boas, porque não poderiam escolher o bem. Repare na assimetria: o Deus mau obriga a que todos se portem mal, é um tirano, mas o Deus bom não obriga ninguém a ser bom, pois a compulsão faria dele um ditador celestial. Aliás, é como a política, o governo autoritário só permite a sua ideia, a sua verdade, pelo contrário, o governo democrático deixa a decisão nas mãos das pessoas. Mas, contestou o Calvo, e os desastres naturais, toda a tragédia que acontece e não tem que ver com a decisão humana? Está assim, pensou a Alexandra, áspero e azedo, por causa da Ana, porque a ansiedade o consome, porque teme o pior. É precisamente aí que tudo se torna mais complexo, disse ela. E como resolver isso?, perguntou ele. Isso daria um outro folhetim, disse ela, enfim, sou de aparições, sou de acreditar. Está nesse estado, senhor Calvo, disse a Alexandra, áspero e azedo, por causa da Ana, porque a ansiedade o consome, porque teme o pior. A polícia está à procura: a si resta-lhe esperar, a mim, acreditar.
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