Bonifácio de Andrada, o cientista esquecido por Portugal que o Brasil enaltece
Livro pretende recuperar a história do cientista e humanista luso-brasileiro José Bonifácio de Andrada. Escrito pela investigadora Isabel Corrêa da Silva, será publicado pela editora Tinta da China.
Uma biografia de José Bonifácio de Andrada, o cientista que Portugal “esqueceu” e o Brasil enaltece como figura da independência, será lançada em Maio por Isabel Corrêa da Silva, investigadora auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa.
No ano em que se comemora o bicentenário da primeira Constituição (de 1824) do Brasil, a historiadora e investigadora portuguesa lembrou, em entrevista à agência Lusa, a figura “pouco conhecida” dos portugueses, que, ao lado do imperador D. Pedro, protagonizou os acontecimentos que deram origem à independência do Brasil, em 1822, sendo por isso objecto de mais do que uma biografia de autores brasileiros.
O impulso para este trabalho de investigação surgiu precisamente por causa das comemorações do bicentenário da independência do país da América do Sul, celebradas por Brasil e Portugal em 2022.
Foi nessa altura que Isabel Corrêa da Silva percebeu como aquela figura era tão desconhecida em Portugal, “mesmo dentro do mundo académico”, apesar de D’Andrada, como era conhecido nos meios europeus, ter vivido 30 anos deste lado do Atlântico.
Na opinião da autora, foi precisamente pelo facto de Bonifácio de Andrada ter sido “politicamente importante e célebre no seu envolvimento político na independência do Brasil, que os portugueses, de certo modo, esqueceram-no”.
Portanto, “não ficou para a história”, de tal modo “que há muito pouca coisa escrita sobre ele”, referiu Isabel Corrêa da Silva a propósito do lançamento desta biografia, que deverá ser apresentada no início de Maio.
Para a historiadora, a biografia que escreveu era “necessária”, lembrando que o homem que foi figura central da independência do Brasil “viveu em Portugal a maior parte da sua vida, foi um cientista e depois um funcionário público (...) durante muito tempo, três décadas”.
Já no Brasil, Bonifácio D’Andrada “é o patriarca da independência, portanto, ombreia com o imperador D. Pedro no protagonismo dos eventos que levaram à independência e, depois, à sua consolidação nos momentos imediatamente a seguir”, havendo naquele país muita coisa escrita sobre ele, acrescentou a investigadora.
José Bonifácio de Andrada foi “um homem das luzes” portuguesas e brasileiras, numa altura em que grandes figuras da sociedade e a monarquia eram atlânticas, defende a autora da primeira biografia em Portugal deste personagem da independência do Brasil.
“Foi um homem das luzes e uma figura muitíssimo importante das luzes portuguesas e das luzes luso-brasileiras. E isso também é interessante e outro factor a destacar” na biografia, diz Isabel Corrêa da Silva, salientando que estas “figuras de finais do século XVIII e início de XIX são luso-brasileiros”.
José Bonifácio de Andrada nasceu no Brasil, estudou em Coimbra e depois foi para a Europa. Mais tarde, trabalhou duas décadas em Portugal e voltou depois para o Brasil, tudo isto num contexto “da monarquia portuguesa, nessa altura, que é uma monarquia Atlântica”, o que, no entender da autora, quer dizer que era uma monarquia que tinha “vários pólos”.
“Não podemos pensar apenas no pólo europeu e da Península Ibérica. É esta mobilidade e também esta amplitude de circulação destas figuras políticas, intelectuais e sociais, um elemento a destacar” naquele período da história, salienta Isabel Corrêa da Silva.
O que tornou célebre José Bonifácio de Andrada “foi o fugaz protagonismo que teve depois, já quase no fim da vida, quando regressa ao Brasil e tem um envolvimento muito intenso nos eventos da independência”, sublinha a autora da biografia.
Em Portugal, destacou-se como cientista e como homem público, porque, de acordo com Isabel Corrêa, “nos finais do século XVIII, intelectuais como Bonifácio de Andrada eram tudo, cientistas, mas também pensavam e escreviam muito em torno de soluções para o desenvolvimento do país. Portanto, eram intelectuais públicos, com propostas de políticas públicas. Não apartavam o seu trabalho da ciência de uma ciência aplicada, no sentido da promoção do desenvolvimento do país. E é nisso que ele se destaca efectivamente”.
Política científica esquizofrénica
Da biografia que escreveu, a autora destaca como aspecto mais interessante o facto de Bonifácio de Andrada ser “o exemplo do que se pode chamar uma política científica, em que a coroa portuguesa começou a apostar no fim no reinado de Dona Maria I e nos finais do século XVIII”.
“Ele foi bolseiro da coroa portuguesa, esteve dez anos a viajar pela Europa, a trabalhar e a aprender junto dos principais centros da sua área de investigação, que era a mineralogia e a metalurgia. E não foi o único”, relata Isabel Corrêa da Silva. Com ele, sabe que foram, pelo menos, mais três colegas.
Isto quer dizer que na transição do século XVIII para o século XIX houve em Portugal “um ímpeto de aposta na ciência muito relevante”, conclui.
Regressado desse périplo de dez anos pela Europa, Bonifácio de Andrada foi considerado “como uma espécie de estrela em ascensão, cientista reconhecido, que pôs o nome de Portugal nos principais circuitos científicos europeus”, frisa a investigadora.
Porém, não demorou muitos anos até a sua experiência ser apagada pelos portugueses. “Rapidamente foi esquecida”, foi “o anticlímax”, e o cientista “passa mais de 20 anos em Portugal a tentar singrar como funcionário público e a tentar aplicar aquilo que aprendeu na Europa” sem êxito. “É como se lhe tivessem tirado o tapete”, afirma a historiadora e investigadora. “A coroa apostou nele, mas depois não lhe deu recursos para aplicar e fazer valer essas coisas”, frisa.
Para Isabel Corrêa da Silva, não deixa de ser “interessante” perceber-se que “uma espécie de esquizofrenia não é de agora”. Existe há 200 ou mais anos, o que considera “uma espécie de incongruência na gestão de uma política científica de que Andrada é um óptimo exemplo”.
Assumindo que não gosta de tirar lições da história e trazê-las para a contemporaneidade, a autora sublinha, contudo, que “há padrões” que se repetem. Na época de José Bonifácio, salientou, outros cientistas foram pagos pela coroa portuguesa para fazerem “as chamadas ‘viagens filosóficas’, vão ao Brasil recolhem exemplares da natureza, de animais, de vegetais e trazem e vão constituindo colecções riquíssimas tanto da coroa como para a Academia das Ciências de Lisboa”.
Contudo, essas colecções, em grande parte, acabaram por ficar “ao abandono, em caixotes, até se destruírem. Algumas foram depois simplesmente levadas pelos franceses, quando foi das invasões francesas, no início do século XIX”, recorda Isabel Corrêa da Silva.
Fundação da modernidade
Esta figura viveu num período da história portuguesa “bastante negligenciado, todo o século XIX, de uma certa maneira”, o que Isabel Corrêa lamenta, porque “as primeiras décadas do século XIX são as da fundação da nossa modernidade”.
“O enquadramento jurídico e mesmo ideológico dos princípios da igualdade perante a lei são herdados desta transição que se faz do antigo regime para o liberalismo, no início do século XIX e, no entanto, é um período que está muitíssimo mal estudado”, diz ainda.
Pensar a revolução liberal portuguesa implica a transição para o liberalismo e implica pensar no Brasil, defendeu. “Isto é muito severo dizer assim abstractamente, mas depois é mais fácil perceber se nos focarmos em pessoas. E esta pessoa em causa, de certa forma, encarna este horizonte de possibilidades políticas e geográficas que estavam na altura”, frisa.
“[Pelo que] pareceu-me ser uma figura que muito bem encarna e exemplifica toda a complexidade política que esteve em causa neste período, fundacional para o Brasil, porque é a origem de uma nova nação, mas é também fundacional para Portugal”, porque é a época em que se dá “uma transformação para o Portugal que nós temos hoje. Nós somos herdeiros desta transição”, realça ainda.
“Este livro pretende recuperar a história do cientista e humanista português conhecido como o Patriarca da Independência do Brasil, que se destacou também como uma das primeiras vozes públicas a defender o imperativo da articulação entre a reforma do império luso-brasileiro e a abolição do tráfico de escravos”, refere, por sua vez, a editora do livro, a Tinta da China.