O que falta no programa do Governo: um exemplo concreto

Os temas do dia são a inteligência artificial e a transição energética, mas Portugal continua a ter um direito das sucessões baseado em concepções de família que remontam ao século passado.

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A palavra herança surge no programa do Governo da seguinte forma: “Agilizar os processos de heranças, em particular quando envolvam bens imóveis e participações sociais em empresas, facilitando o espoletar da sua alienação e/ou divisão (convertendo-se em liquidez essa parte dos ativos da herança), favorecendo em simultâneo a sua resolução fora dos tribunais e evitando pendências de décadas.”

Agilizar, facilitar e evitar pendências de décadas são ideias atractivas, mas é preciso que tenham reflexo prático. Como isso acontecerá, ou se acontecerá, só o tempo o dirá.

Recentemente, foi notícia que, pelo menos, 30% dos terrenos rústicos estão ainda registados em nome de defuntos. É elevada a probabilidade de estes terrenos serem objecto de processos de partilhas que se arrastam nos tribunais durante anos a fio e indicia que são terrenos que não têm qualquer tipo de manutenção e limpeza. Infelizmente, já nos habituamos à abertura dos noticiários, nos verões, com imagens de labaredas a destruir hectares de terras, mas mais do que sensacionalismos, importa procurar a raiz da má gestão do território que está à vista de todos.

Igualmente expressivo será o caso de prédios urbanos em circunstâncias semelhantes, algo que tendo em conta a crise na habitação é inaceitável. Não querendo entrar na discussão sobre a bondade ou não dos vistos gold, a realidade é que a crise da habitação não se explica só pelo facto de o mercado imobiliário ser cada vez mais apelativo apenas para os mais ricos. A crise é também explicada pela desadequação do nosso direito das sucessões ao mundo de hoje.

É de difícil compreensão que, num mundo em que haja discussões sobre inteligência artificial, a lei portuguesa imponha aos cidadãos que haja uma porção dos seus bens de que estes não podem livremente dispor por estar destinada aos seus herdeiros legitimários – estes que a lei também define quem são: dependendo dos casos, são os filhos, os pais e os cônjuges.

Mal anda um país cujo legislador (leia-se, o Estado) entende que os cidadãos não têm discernimento suficiente para disporem dos seus bens, em plena consciência, como bem lhes apetece. Este é um Estado que quer impor ao cidadão um conceito de família e fá-lo em prejuízo da vontade individual de cada um de nós – reflectida na liberdade de doar os seus bens a quem quer e como bem entende.

Isto que descrevo poderia fazer sentido quando a lei foi concebida, porém, é mais do que evidente que já não se adequa ao mundo de hoje. Um mundo que tem desafios muito concretos, desde logo uma população cada vez mais envelhecida e, no caso português, tantas vezes com baixas pensões e sem liquidez, mas com imóveis. Imóveis estes que poderiam, por exemplo, doar a quem fosse seu cuidador. O Estado, não obstante esta realidade, não permite que as pessoas façam isso por conflituar com o conceito de família que nos é imposto pela lei sucessória.

A lei está em claro desfasamento com uma realidade em que as dinâmicas familiares e de afinidade não encontram reflexo no curto elenco de herdeiros legitimários.

O impacto que este atraso legislativo tem na vida das empresas, na gestão do património imobiliário, intelectual, e na vida emocional das pessoas até, é de uma tal gravidade e dimensão que é totalmente incompreensível como é que não há coragem política para mudar e trazer Portugal para o século XXI.

Os portugueses já fizeram o seu papel, já chegaram aos dias de hoje. Haja esperança que não tenham de esperar muito pelos seus governantes neste apeadeiro.

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