H&M e detentora da Zara usam “algodão sujo” vindo do Brasil, denuncia relatório

Produtores de algodão no cerrado brasileiro fomentam desflorestação, poluição e opressão de comunidades tradicionais, diz organização Earthsight. Mercadoria acaba por alimentar moda rápida na Europa.

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A Zara pode chegar a ter 24 colecções diferentes ao longo de um ano Sergio Perez/Reuters

Duas empresas brasileiras produtoras de algodão na Região Oeste da Baía, no ecossistema do cerrado, produzem toneladas de algodão graças à desflorestação daquele ecossistema, oprimindo comunidades tradicionais e poluindo a região, de acordo com um novo relatório. Este algodão, que apesar daquele contexto é certificado como sendo sustentável pela empresa europeia Better Cotton, vai abastecer empresas que manufacturam roupa na Ásia que, por sua vez, alimentam as lojas da H&M, da Zara e outras marcas da indústria da moda rápida.

A denúncia traduz um caso clássico da exploração do Sul global pelo Norte global e veio da Earthsight, uma organização não-lucrativa com sede em Londres, que investiga casos ligados à desflorestação em todo o mundo, e que neste caso passou mais de um ano a analisar a cadeia de fornecimento iniciada no sertão brasileiro e que termina nos consumidores de vestuário da Europa e dos Estados Unidos, os dois maiores mercados mundiais de roupa.

“O Brasil é o segundo maior exportador de algodão do mundo, quase todo cultivado no cerrado, vinculado ao desmatamento de milhares de hectares de terra, ao consumo insustentável de água, ao uso excessivo de produtos agro-tóxicos muito nocivos ao meio ambiente e à saúde de comunidades locais”, diz ao PÚBLICO Rubens Carvalho, director adjunto da Earthsight e autor do novo relatório Crimes na Moda — A Ligação dos Gigantes do Retalho Europeu ao Algodão Sujo Brasileiro, divulgado esta quinta-feira, a que o PÚBLICO teve acesso previamente.

“As grandes empresas de moda na Europa — falamos especificamente da H&M e da Zara neste relatório — estão falhando em monitorizar as suas cadeias de fornecimento de algodão para garantir que as roupas que vendem não estejam vinculadas a esse tipo de problemas, nesse caso, no Brasil”, refere o responsável.

Tanto a H&M como a Inditex, dona da Zara que detém ainda as marcas Pull&Bear, Bershka, Massimo Dutti, Stradivarius e Zara Home, usam o sistema de certificação da Better Cotton nos produtos que põem à venda. Questionadas sobre o que se passa, as duas empresas passaram a responsabilidade de verificar as novas acusações para a Better Cotton.

“Levamos extremamente a sério as alegações contra a Better Cotton. Consequentemente, solicitámos à organização que partilhasse, o mais rapidamente possível, o resultado da investigação independente que foi levada a cabo [a pedido da Better Cotton] e as medidas necessárias para garantir uma certificação de algodão sustentável que respeite os mais elevados padrões", de acordo com a declaração do grupo Inditex, partilhada com o PÚBLICO.

“Estamos em estreito diálogo com a Better Cotton para acompanhar o resultado da investigação. Por conseguinte, remetemos gentilmente para a Better Cotton para obter mais informações sobre as próximas medidas que estão a ser tomadas como resultado da sua investigação”, respondeu, por sua vez, Iñigo Sáenz Maestre, do gabinete de comunicação da H&M, num e-mail enviado ao PÚBLICO.

Além de se escudarem por trás da Better Cotton, nem a H&M nem a Inditex responderam à pergunta do PÚBLICO sobre se iriam passar a monitorizar autonomamente a origem do algodão usado na manufactura das suas roupas, tal como apela o novo relatório.

“As empresas isentam-se da responsabilidade de monitorizar as cadeias de fornecimento e confiam em sistemas de certificação que são extremamente falhos”, comenta Rubens Carvalho, acrescentando que este problema afecta vários sectores responsáveis pela desflorestação ao nível mundial. “Temos observado há anos uma falha completa do sector privado em garantir que essas cadeias de fornecimento sejam mais sustentáveis. Estamos perdendo florestas a um ritmo extraordinário. Temos que deixar de confiar que o sector privado faça a coisa certa e precisamos que os Governos regulamentem essas cadeias.” Ao nível da União Europeia, o responsável pede que a cadeia de fornecimento de produtos feitos com algodão passe a ser avaliada pelo seu impacto no desflorestamento nos locais de origem.

Exploração do cerrado

Ao contrário da Amazónia, o cerrado brasileiro é alvo de muito menos atenção relativamente à sua exploração. Cobrindo 22% do território daquele país, o bioma tem características únicas, sendo o habitat de 161 espécies de mamíferos. Infelizmente, a desflorestação tem aumentado, fazendo deste ecossistema uma nova fronteira da indústria agrícola, particularmente da soja. Em 2023, a área desmatada no cerrado foi de 7828,2 quilómetros quadrados (equivalente à área da Beira Baixa), um aumento de 43% face a 2022 e um valor superior ao da Amazónia em 2023, que foi de 5151,6 quilómetros quadrados. Só no estado da Baía, foi desmatada uma área de 1727,8 quilómetros quadrados de cerrado no ano último.

O caso apresentado agora pela Earthsight diz respeito às empresas SLC Agrícola e Grupo Horita, que fazem produção de algodão na Região Oeste da Baía. A SLC Agrícola é o maior produtor de algodão do Brasil, e tem naquela região 440 quilómetros quadrados de plantações daquela matéria-prima. Já o Grupo Horita faz parte das seis maiores empresas produtoras de algodão e detém 1400 quilómetros quadrados de área de cultivo naquela região.

“Cada ano, milhares de milhões de litros de água são desviados para os campos de algodão que são encharcados por 600 milhões de litros dos mais venenosos pesticidas”, resume o comunicado da Earthsight, que explica ainda que a necessidade de tantos pesticidas torna esta cultura numa grande emissora de dióxido de carbono, o principal gás responsável pelo aumento do efeito de estufa e das alterações climáticas.

O relatório faz um resumo de várias acusações públicas que as duas empresas negam. Por um lado, terrenos das duas empresas terão sido obtidos a partir da “grilagem”, uma “prática criminosa que envolve invadir, ocupar, lotear e obter ilicitamente a propriedade de terras públicas sem autorização do órgão competente”, segundo a definição do Fundo Mundial da Natureza (WWF) Brasil. Por outro lado, tanto o Grupo Horita como a SLC Agrícola têm várias acusações de desflorestação ilegal naquela região e de opressão das comunidades tradicionais. No caso do Grupo Horita, há ainda uma acusação de corrupção de Walter Horita, um dos fundadores.

Apesar desta questão, o algodão produzido pelas duas empresas ganhou o certificado de ser sustentável pela Better Cotton, que no Brasil delega este processo da certificação na Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapo).

“A Abrapo existe para defender os interesses do sector algodoeiro no Brasil, não existe para garantir a sustentabilidade da produção de algodão. Então não é uma entidade imparcial ou neutra que possa estar a cargo desse processo de certificação”, acusa Rubens Carvalho. “A​ nossa investigação revela que a Better Cotton é um sistema de certificação extremamente falho, com uma série de defeitos graves.”

Num comunicado enviado ao PÚBLICO já nesta quinta-feira, a Better Cotton explicou que iria enviar o sumário dos resultados da auditoria independente à Earthsight e aos seus membros, como a H&M e a Inditex, não referindo se já há conclusões vindas da auditoria. “De acordo com os nossos procedimentos operacionais, se houver provas de que as explorações não cumprem os requisitos da Better Cotton, as suas licenças serão suspensas ou revogadas”, adianta o comunicado.

Modelo não-sustentável

A segunda parte do trabalho da Earthsight passou pelo rastreamento da exportação de 816 mil toneladas de algodão entre 2014 e 2023 produzidos pelo Grupo Horita e pela SLC Agrícola “para mercados estrangeiros”, de acordo com o relatório. Aquela quantidade deverá ser muito menor do que o verdadeiro valor exportado, de acordo com a organização. “A SLC, por exemplo, afirmou ter sido responsável por 11% das exportações do Brasil em 2019/20, com exportações totais de 228.000 toneladas na região. Contudo, nós só conseguimos rastrear 80.320 toneladas daquele período”, lê-se no relatório.

Através do seguimento das mercadorias e da visita a feiras de têxteis na Europa e no Brasil, a Earthsight conseguiu identificar “oito fabricantes de roupas na Ásia que usam algodão Horita e SLC e, ao mesmo tempo, vendem à H&M e Zara milhões de peças de roupas de algodão prontas para serem comercializadas”, segundo o documento.

Um dos oito fabricantes é a PT Kahatex, sediada na Indonésia, que será a maior compradora de algodão dos dois produtores brasileiros. “A H&M, por sua vez, é o segundo maior cliente da PT Kahatex, da qual já comprou milhões de pares de meias, calções e casacos de algodão”, segundo o relatório. Outro fabricante é o Jamuna Group, no Bangladesh. “Quase dois terços das exportações de vestuário do Jamuna Group são para empresas do grupo Inditex”, segundo o relatório. “De Janeiro a Agosto de 2023, as lojas da Zara na Europa venderam 235 milhões de euros em calças e outras roupas de algodão fabricadas pela Jamuna no Bangladesh. Ou seja, aproximadamente 21.500 pares de calças por dia”, refere o documento. Há também cinco fabricantes no Paquistão que produzem roupa para as duas marcas e recebem algodão das duas empresas brasileiras.

Toda esta produção alimenta uma indústria que está continuamente a produzir novas colecções e a fomentar a moda rápida. Segundo o relatório, a Zara chega a apresentar 24 colecções por ano e a H&M 16. “O modelo de negócio dessas empresas em si não é sustentável. Porque é baseado justamente no crescimento contínuo de consumo, que exige obviamente cada vez mais terra para produzir algodão e o impacto disso é cada vez maior”, ressalta Rubens Carvalho. “O consumo no Norte global, inclusive no sector da moda, está ligado a práticas insustentáveis na América Latina, África e Sudeste da Ásia, que têm visto as suas florestas desaparecerem para abastecer mercados em países ricos. Isso precisa de mudar. A Europa e os Estados Unidos precisam de adoptar leis ambiciosas e punir empresas que não as respeitem.”

Notícia actualizada às 16h00 de 11 de Abril de 2024 juntando a informação dada pela Better Cotton.