“Não derrubámos o muro, mas fizemos uma grande fenda.” Decisão do Tribunal Europeu abre portas à justiça climática
Caso dos jovens portugueses contra 32 países não foi aceite pelo tribunal, mas as “avós do clima” suíças conseguiram decisão favorável: a inacção climática é uma violação dos direitos humanos.
Não tiveram a decisão que esperavam, mas Cláudia, Martim, Mariana, Catarina, Sofia e André, os seis jovens portugueses que abriram um processo contra Portugal e outros 31 Estados-membros do Conselho da Europa, argumentando que a sua inacção no combate às alterações climáticas viola os seus direitos humanos, saíram nesta terça-feira do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) de Estrasburgo com uma enorme vitória moral — e o caminho aberto para novas acções pela justiça climática.
O pleno dos 17 juízes do tribunal de Estrasburgo decidiu pela inadmissibilidade do caso apresentado em 2020, considerando não estarem cumpridos os critérios da jurisdição extraterritorial para uma pronúncia, nem esgotadas as vias judiciais nacionais de forma a justificar a análise dos seus argumentos. Porém, ainda que o seu processo não tenha avançado, o resultado do dia foi “uma vitória” para os portugueses.
“Usando uma parábola futebolística tonta, a sensação que temos foi que marcámos três golos lindos, mas estavam todos em fora-de-jogo”, resumia no final da audiência, Nuno Gaspar Oliveira, pai de Sofia e André, dois dos jovens requerentes portugueses que com enorme paciência e boa vontade aceitaram repetir múltiplas vezes as respostas às mesmas perguntas feitas por jornalistas de toda a Europa.
“Apesar de o nosso caso em particular não ter avançado, conseguiu construir precedentes. E o caso suíço ganhou, o que é gigante para todos nós”, considerou André Oliveira, referindo-se à única pronúncia do TEDH que validou a queixa apresentada pelo colectivo suíço KlimaSeniorinnen, um grupo que representa mais de 600 mulheres de mais de 75 anos que processaram o Governo helvético pelo seu falhanço em protegê-las do impacto das alterações climáticas, nomeadamente dos efeitos das vagas de calor.
Vitória da justiça climática
Numa decisão histórica, que o grupo de “avós do clima” acabaria por dedicar aos jovens portugueses, o tribunal considerou que as autoridades suíças não respeitaram as suas obrigações ao abrigo da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, em violação do artigo 6.º, relativo ao direito a um processo equitativo, e ao artigo 8.º, referente ao respeito pela vida privada e familiar. Foi o único ganho de causa nos três processos relacionados com a acção (ou inacção) climática que foram apreciados pela Grande Câmara do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos: tal como aconteceu no caso dos jovens portugueses, a queixa interposta por Damien Carême, o antigo presidente do município de Grande-Synthe, um subúrbio da cidade francesa de Dunquerque, não foi acolhida pelos juízes.
Mas no curto resumo em que apresentou as razões do tribunal para a sua pronúncia no processo Duarte Agostinho e Outros v. Portugal e 32 Outros (n.º 39371/20), a juíza presidente Síofra O’Leary deixou claro que a inadmissibilidade tem que ver com questões técnicas e não com a substância da queixa dos seis jovens portugueses. Aliás, a juíza reconheceu que existe uma “relação de causalidade” entre as actividades que produzem emissões de gases com efeito de estufa e o seu “impacto adverso” nos direitos humanos e bem-estar das populações, e vincou que os Estados têm a obrigação de tomar medidas para reduzir essas emissões e mitigar os seus impactos nocivos.
“O problema das alterações climáticas tem uma natureza verdadeiramente existencial para a humanidade, e isso distingue-o de outras situações de causa e efeito”, afirmou.
Porém, no entendimento do tribunal, os requerentes portugueses não foram capazes de provar que a dimensão dessa ameaça se manifesta de forma a cumprir os critérios de jurisdição extraterritorial. Os juízes também não acolheram o argumento para o recurso directo a um tribunal internacional, reafirmando o princípio da subsidiariedade. Para o Estado português, essa foi a faceta mais “positiva” da pronúncia do TEDH, no sentido em que reconhece que existem meios internos jurisdicionais adequados para avaliar este tipo de queixas.
“Agora vamos absorver a informação”
“Isto não acaba aqui, isto é apenas o começo”, afirmou Catarina Mota, ainda a processar as diferentes emoções no fim da audiência, que foi também o fim de um processo longo de trabalho conjunto com o apoio de equipas internacionais de advogados e cientistas — e também da mais célebre activista mundial pelo clima, Greta Thunberg, uma presença discreta esta terça-feira, em Estrasburgo.
Depois de sete anos de trabalho “desgastante”, os seis requerentes portugueses entendiam que “o trabalho não foi perdido de todo” e que a pronúncia do tribunal acabou por demonstrar a validade — e necessidade — da sua luta por justiça climática. “Não derrubámos o muro, mas fizemos uma grande fenda”, afirmou Catarina Mota. “Todos os governos na Europa têm de agir em conformidade com esta decisão imediatamente, e agora precisamos que as pessoas de toda a Europa se juntem para garantir que os seus países fazem isto”, nota ainda a jovem. “O dia foi uma vitória pelo facto de termos conseguido precedentes para, no futuro, outras decisões climáticas. Estamos claramente felizes, este não é um dia triste”, garantiu.
Com uma calma impressionante, os portugueses foram esclarecendo que o próximo passo é avaliar cuidadosamente o acórdão produzido pelo TEDH, para depois decidir se se justifica o recurso aos tribunais portugueses. “Agora vamos fazer uma pequena pausa, absorver toda a informação que recebemos hoje, e pensar no que podemos fazer a seguir. Depois logo se vê”, respondeu André, sempre renitente a repetir os adjectivos com que os jornalistas iam enquadrando as suas perguntas sobre um caso “inédito” e um dia “histórico”.
Como os restantes, o jovem de 15 anos não se vê como um protagonista nesta história. “Nós tivemos esta oportunidade incrível de criar um caso para levar a tribunal e aproveitámo-la logo. Mas não com o intuito de ser pioneiro, só com o intuito de defender os nossos direitos humanos, e os de toda a gente”, justificou, acrescentando que “nós, na verdade, só queremos ser alunos e jovens normais que estão a lutar pelo que acreditam”.
Orgulho era uma palavra demasiado pequena para o seu pai descrever o que sentia no fim de toda esta experiência. Questionado sobre o que a sua família retirou do processo, Nuno Gaspar Oliveira não teve dúvidas em apontar uma “grande lição”. “A partir do momento em que numa criança curiosa se instala uma dúvida, essa criança é imparável. Estes seis miúdos acreditaram que uma resposta era possível e foram imparáveis”, diz, sublinhando que a resposta que o tribunal lhes deu foi indiscutível. “O tribunal disse que [um aumento da temperatura de] 1,5 graus já é uma ameaça relevante com base na ciência”, frisou. “É uma grande vitória da normalidade dos factos sobre o achismo que anda a dominar a opinião pública”, vincou.
“Uma vitória para todas as gerações”
“Ainda não conseguimos acreditar. Estamos sempre a perguntar aos nossos advogados: ‘Isto está certo?’ E eles dizem-nos que é o mais longe que podíamos ter chegado. A maior vitória possível”, afirmava Rosmarie Wydler-Wälti, co-presidente da associação de mulheres idosas pelo clima, à saída da Grande Câmara. “A nossa vitória é uma vitória para todas as gerações, especialmente para os jovens portugueses, cuja geração será a beneficiária a longo prazo de um clima melhorado”, acrescentou ainda. “A presença dos jovens na sala de audiências mostrou aos juízes o rosto dos direitos humanos para o futuro.”
Cordelia Bähr, principal advogada das KlimaSeniorinnen ao longo de “nove anos de trabalho intensivo”, alerta que “o significado desta decisão não pode ser subestimado”. “Será de grande importância para outras acções judiciais contra Estados e empresas em todo o mundo e aumentará as suas hipóteses de sucesso”, descreve. “O acórdão mostra aos cidadãos, juízes e governos de toda a Europa o que é necessário em termos de protecção climática para respeitar os direitos humanos.”
“Esta decisão é um marco na luta por um clima habitável para todos”, completa ainda Anne Mahrer, outra co-presidente da Verein KlimaSeniorinnen. “Depois de os tribunais suíços se terem recusado a ouvir-nos, o TEDH confirmou agora que a protecção do clima é um direito humano.”
Decisão “não diminui responsabilidade” do Governo
Naquelas que foram as suas primeiras declarações sobre matérias de acção climática enquanto ministra do Ambiente e da Energia do novo Governo, Maria da Graça Carvalho afirma que a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos humanos “não diminui a responsabilidade” do Governo com a acção climática.
Num comunicado enviado na terça-feira, logo após a decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, Graça Carvalho afirmava que “esta pronúncia não diminui a nossa ambição e a nossa responsabilidade para com a acção climática”. A ministra acrescenta ainda que “tem sido feito um esforço legislativo importante a nível europeu e a nível nacional nesta área” e que Portugal tem “objectivos ambiciosos para a redução das emissões de gases com efeito de estufa, ambicionando atingir a neutralidade carbónica até 2045, cinco anos antes das metas definidas pela UE”.
O ministério de Maria da Graça Carvalho reconhece que “Portugal está alinhado com as metas europeias, mas tem de reforçar o desempenho na redução das emissões do sector dos transportes, que aumentaram nos últimos anos devido a uma estratégia pouco eficaz na área da mobilidade”.
Também um porta-voz da Comissão Europeia, citado pela Reuters, veio afirmar que “a Comissão toma nota destas decisões e irá certamente estudá-las com cuidado”. “Independentemente dos argumentos legais, o que estes casos fazem é lembrar-nos da grande importância e urgência que os nossos cidadãos atribuem à acção climática.”