Tribunal europeu decide sobre três casos que marcam futuro da luta climática nos tribunais
Seis jovens portugueses, centenas de mulheres idosas suíças e um antigo autarca francês ouvem esta terça-feira a decisão do Tribunal de Direitos Humanos sobre três casos climáticos pioneiros.
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Não se sabe o que aí vem, mas já se sabe que algo vai mudar no direito europeu esta terça-feira, quando o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) anunciar as suas decisões sobre três casos pioneiros em que diversos países são acusados de não fazer o suficiente no combate às alterações climáticas. É a primeira vez que um tribunal regional de direitos humanos se pronuncia sobre casos relacionados com o clima.
Nas mãos dos 17 juízes da Grande Câmara do TEDH estiveram, nos últimos meses, três processos. O primeiro é o de seis jovens portugueses que, em Setembro de 2020, levaram 33 países ao TEDH (entretanto, com a guerra, retiraram a Ucrânia deste grupo) por não cumprirem as suas obrigações internacionais de redução de emissões. O agravamento das alterações climáticas decorrente desta inacção tem potenciado a ocorrência de fenómenos extremos, que põem em risco as suas vidas e o seu bem-estar, causando também ansiedade.
Será também ouvida a decisão sobre o caso das Klimaseniorinnen, as “avós do clima”, que acusam o Estado suíço de ter metas insuficientes para combater as alterações climáticas, resultando em impactos como ondas de calor que tiveram efeitos concretos na saúde destas mulheres idosas. Por fim, o caso do eurodeputado ecologista Damien Carême, que iniciou o processo quando ainda era autarca de Grande-Synthe, uma cidade no Norte de França ameaçada pela subida do nível das águas do mar.
“A questão climática põe em causa, no limite, todos os direitos humanos”, nota Armando Rocha, professor na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa. Só que viver num ambiente limpo, saudável e sustentável, que já é um direito humano reconhecido pelas Nações Unidas, não faz parte do rol de direitos reconhecidos na Carta Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), o conjunto de 59 artigos e quase duas dezenas de protocolos que norteia a acção do tribunal.
É através da jurisprudência do TEDH (ou seja, da forma como decidiu em casos anteriores) que é possível afirmar que a protecção do ambiente é, na prática, um direito humano nos países do Conselho da Europa, na medida em que muitas decisões do tribunal deixam claro que um ambiente em risco ameaça também o direito à vida das pessoas que estão em contacto com essa realidade. O grande teste desta terça-feira é perceber se o tribunal reconhecerá a obrigação dos países de fazerem a sua parte para combater as alterações climáticas. Mas o caminho para lá chegar é cheio de obstáculos.
Dificuldades jurídicas
Em comum, cada um dos casos pede ao tribunal para avaliar eventuais violações da Convenção Europeia dos Direitos Humanos nos seus artigos 2.º, sobre o direito à vida, e 8.º, sobre o respeito pela vida privada e familiar. No mais, os casos “são muito diferentes entre si e todos eles têm obstáculos muito grandes”, nota Armando Rocha.
Corina Heri, investigadora da Universidade de Zurique, tem debatido o caso nas suas aulas (mesmo antes da decisão do TEDH) pelo facto de ser particularmente espinhoso: “Todos os passos que têm de ser cumpridos estão a ser discutidos”, explica ao Azul. Um dos grandes desafios é a questão da chamada “jurisdição extraterritorial” em relação aos 31 Estados para além de Portugal. Apesar de “ninguém ter um clima só seu” — as alterações climáticas dizem respeito ao planeta — é difícil que o tribunal determine que outros países sejam responsabilizados por factos ocorridos em território português que afectam cidadãos portugueses.
Apesar de ser claro, de acordo com a ciência climática, que a responsabilidade pelas emissões de gases e o aquecimento do planeta é conjunta (e sabemos quem são os grandes países emissores), não é tão simples traduzir isso em termos legais, quanto mais não seja pela arbitrariedade na escolha dos 32 países acusados (eram 33 inicialmente) — e uma decisão nesse sentido por ser “muito conflitante com outras decisões do TEDH”, nota Armando Rocha.
O caso Duarte Agostinho, como é conhecido o processo português, traz ainda outro desafio, que é o “não esgotamento dos meios internos”: ou seja, ao contrário dos outros dois casos, os jovens foram directamente para o TEDH, sem passar pelas instâncias nacionais, alegando que o tempo necessário para processar mais de 30 países é incompatível com a urgência da crise climática.
Um dos grandes obstáculos que será preciso ultrapassar em todos os casos é o estatuto de vítima, já que “uma vítima é alguém que sofre algo diferente do mundo inteiro, algo que a individualiza”, explica Armando Rocha. Como fazer no que toca às alterações climáticas, que não têm fronteiras? “Estes casos desafiam os critérios sobre a vítima”, afirma Corina Heri, explicando que aceitar este estatuto pode significar um alargamento do entendimento do tribunal, o que não acontecerá sem riscos. “Eu diria que isto pode ter impactos significativos que vão para além dos factos do caso, para além das alterações climáticas”, alerta a investigadora.
Todos estes casos receberam várias submissões de terceiros, desde relatores especiais das Nações Unidas à comissária do Conselho da Europa para os Direitos Humanos, passando por académicos especializados em direito e alterações climáticas e, claro, organizações não-governamentais.
Vários tons de vitória
Ainda que o tribunal não dê uma vitória retumbante a nenhum destes casos — ou seja, se não disser que há violação da CEDH —, uma argumentação em que ultrapasse qualquer um destes obstáculos pode legitimar uma série de outros processos. “Começa a ser estranho se ao fim de tanto tempo o tribunal disser que não têm razão por questões processuais”, comenta Armando Rocha, numa nota mais optimista.
“O sucesso pode ter várias formas, pode haver várias vitórias mesmo sem uma 'vitória'”, salienta Corina Heri. Aliás, “o simples facto de estes casos terem chegado à Grande Câmara já é um sucesso”. “Os juízes estão a analisá-los, tiveram uma audiência pública, as pessoas estão a falar sobre isto” — em suma, o tribunal pôs estes casos no mapa.
Se algum dos processos for declarado admissível contra qualquer um dos Estados (por exemplo, sendo reconhecido o estatuto de vítima), já será uma vitória — “e um sinal de que o tribunal ouviu o caso, e outros poderão conseguir ir mais longe”.
“É a narrativa que vai importar”, explica ainda Armando Rocha, acrescentando que “não é uma questão binária, de ‘tem razão’ ou ‘não tem razão’”. O tribunal pode, por exemplo, deixar claro na sua argumentação que o não cumprimento das Contribuições Nacionalmente Determinadas (sob o Acordo de Paris) pode constituir uma violação do artigo 2.º, do direito à vida. “Teríamos uma decisão que é o mesmo do ponto de vista formal, mas que do ponto de vista narrativo fez questão de deixar [outros elementos] bem explícitos”.
É importante notar que o TEDH “não pode aplicar o Acordo de Paris, nem a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre as Alterações Climáticas, nem a Convenção de Aarhus [sobre acesso à justiça]”, alerta Armando Rocha, mas deve “ler cada direito humano de acordo com a forma como está a ser lido segundo outros acordos internacionais”.
Consequências na prática
E que consequências podem ter estes casos na prática? As “avós do clima”, por exemplo, pedem uma revisão do plano do governo suíço contra as alterações climáticas. Os jovens portugueses pedem acção eficaz dos governos, cabendo ao tribunal dizer (ou não) aos Estados que não estão a cumprir as suas obrigações em matéria de redução das emissões de gases com efeito de estufa.
“O tribunal poderá deixar claro que o clima não é uma área sem lei”, desafiou ainda Cordelia Bähr, que lidera a equipa jurídica das Klimaseniorinnen, em declarações antes da audiência do TEDH. “Esta decisão pode ter impacto no acesso à justiça em casos de violações de direitos humanos relacionadas como clima na Europa.”
Um impacto indirecto que estas decisões poderão ter é a atenção dada pelos Estados e, em particular, instituições como a Comissão Europeia. “É possível que a União Europeia passe a olhar para os seus regulamentos e objectivos com outro grau de exigência”, confirma Armando Rocha.
As decisões do TEDH prometem trazer orientações e alguma clareza sobre como abordar as alterações climáticas, assim como um guia sobre como os tribunais podem envolver a ciência climática na sua argumentação.
No mais, é um facto que não há como a justiça ignorar o que se está a passar no planeta. “Não há nada que não seja afectado pelas alterações climáticas, os casos continuarão a surgir”, alerta Corina Heri, da Universidade de Zurique. Mais do que isso, estes casos terão levado a sociedade a reflectir sobre os tempos da justiça e sobre o seu papel na luta existencial contra as alterações climáticas: “Chegaremos lá a tempo de tomar medidas significativas?”, questiona Corina Heri.