Total de mortes
Na Faixa de Gaza, como em todas as terras, as crianças continuam a jogar à bola na rua e a perguntar aos adultos se têm chocolate. Como todos os miúdos, têm pesadelos, têm medo e procuram segurança nos mais velhos. Mas em Gaza, como em nenhum outro lugar, 14 mil crianças foram mortas em seis meses — mais de 75 mortes por dia.
Foi em Rafah, Sul de Gaza, que Karen Beattie se apercebeu de que o trauma fica especialmente vincado no rosto das mulheres. O medo é visível na sua expressão, nos espasmos musculares, nos tremores, nos suores. “Ao mesmo tempo, tentam acalmar os filhos, mas os filhos conseguem ver a mãe aterrorizada. Quando somos crianças, procuramos conforto nos adultos, porque não partilham os nossos medos. Mas aqui os adultos estão tão apavorados como as crianças.”
Nas raparigas de 12, 13 anos, o olhar tornou-se mais pesado por cada um dos últimos 180 dias. “Parecem perdidas, como se não soubessem o caminho para casa, confusas, de luto e profundamente desoladas”, caracteriza a coordenadora da resposta humanitária de emergência da Save The Children.
Nos rapazes da mesma idade, a raiva toma o lugar da tristeza. Irritam-se, explodem a cada discórdia. “São pessoas que não conheço, nunca as vi antes, mas é claríssimo, não é preciso ser psicóloga. Não é o primeiro lugar onde reconheço esta expressão, mas é a primeira vez que a vejo em tantas crianças.”
Número de crianças mortas em território palestiniano
Por regiões, desde 2000
Quanto tempo leva a sarar uma geração traumatizada?
Bill Van Esveld entrou pela primeira vez na Faixa de Gaza em 2009, logo depois da Operação Chumbo Fundido, como lhe chamam as Forças de Defesa de Israel (IDF), ou Massacre de Gaza, como lhe chamam os palestinianos. O actual director do departamento de direito infantil no Médio Oriente da Human Rights Watch (HRW) lembra-se de, nesse ano, ficar horrorizado com actos que hoje parecem detalhes.
Pela primeira vez, Israel tinha disparado artilharia pesada contra Gaza. As IDF usaram, repetidamente, munições de fósforo branco contra áreas residenciais, densamente povoadas, assim como munições explosivas, de baixa precisão. “É uma arma para guerras em terreno aberto. É aterrador pensar que seria utilizada numa cidade, num local urbano e muito povoado, como Gaza, de onde as pessoas não conseguem fugir”, diz Bill Van Esveld.
“Foi incrivelmente devastador em 2008/2009, só piorou em 2014 e agora ultrapassou todos os limites. A cada novo conflito em Gaza, novos horrores parecem eclipsar os anteriores”, lamenta o trabalhador humanitário, em conversa com o PÚBLICO, a partir da Grécia. Desta vez, não foi autorizada a entrada da HRW em Gaza, nem através do Egipto.
Já a Save The Children, há décadas em Gaza e com um escritório em Ramallah, na Cisjordânia, acompanha diariamente crianças palestinianas em Rafah (sem autorização para operar no Norte e Centro do enclave). Karen Beattie chegou em Janeiro, para reforçar uma equipa de apoio humanitário também afectada pela guerra.
Com experiência em zonas de conflito e crise humanitária no Médio Oriente, África e Ásia, foi em Gaza que conheceu o que não sabia existir. No dia em que conversou com o PÚBLICO, uma mulher palestiniana disse-lhe o que nunca tinha ouvido: “Estávamos a falar do difícil acesso a comida e água e ela, referindo-se em particular às crianças, disse-me: ‘A saúde mental, o apoio psicológico, é mais importante que a comida’.”
“É um murro no estômago. Os mais pequenos continuam a brincar na rua. Estão lá fora a brincar com papagaios de papel, feitos por eles. Jogam berlindes, futebol se alguém tiver uma bola. Estão a divertir-se”, conta Karen Beattie, a partir de Rafah. “Mas todas as noites, quando me deito e ouço os aviões, penso se estarão perto. E quando chega a explosão, sei que estou bem, mas há alguém que não está. Será uma criança? Uma mulher? Uma família inteira?”
Ao caminhar por Rafah — onde estão mais de um milhão de pessoas, apertadas numa área semelhante à da cidade de Matosinhos —, vêem-se crianças por todo o lado. Os mais velhos sabem o que é a guerra e lutam contra cada memória. Os mais novos têm, sobretudo, medo, descrevem as pessoas com quem o PÚBLICO falou.
“Para as crianças que perderam as suas famílias, que foram amputadas, que estão gravemente feridas, que foram alvejadas enquanto fugiam das suas casas... Eu não sei como é que isso se gere, nem quando crescerem”, diz Karen Beattie. “Temos uma geração inteira traumatizada e esse trauma vai levar muito tempo a sarar.”
“E é por isso que falamos de genocídio”
Aos 14 anos, Khaled Quzmar viu o irmão ser detido pelos militares israelitas. Podia visitá-lo na prisão, mas uma grade separava-os e proibia os abraços. Khaled percebeu rapidamente que só os advogados podiam passar para o outro lado — estava decidida a futura profissão. Foi para a Argélia estudar Direito e regressou à sua terra, a Palestina, cinco anos depois. Em poucos dias, entrou na cela onde o irmão continuava detido. Podia, finalmente, abraçá-lo.
Passou décadas a defender menores palestinianos julgados por tribunais militares israelitas e é hoje director da Defense for Children Palestine (DCI), organização independente que investiga e documenta violações dos direitos das crianças, sediada em Ramallah, na Cisjordânia.
“Comecei a trabalhar como advogado em 1988, na primeira Intifada. Juntei-me à DCI em 1995, portanto também assisti à segunda Intifada e a dezenas de ataques israelitas a Gaza que se seguiriam. Mas não há comparação com o que está a acontecer desde 7 de Outubro”, diz, em entrevista ao PÚBLICO. “Estamos a ver o assassinato indiscriminado de crianças, civis, militantes [islamistas]. Gaza está a ser bombardeada por via aérea, por terra e por mar, 24 horas por dia.”
Nos períodos mais violentos das últimas décadas, a percentagem de menores mortos em relação ao total de vítimas em Gaza manteve-se entre os 21% e os 25%. O número era alto: por cada quatro vítimas, uma era uma criança. Desta vez, essa percentagem já duplicou. As crianças representam 42% das mortes no enclave palestiniano.
Para Khaled, a ausência de alertas por parte das autoridades israelitas é uma das explicações para esse aumento. No passado, diz, era frequente as IDF comunicarem que certa zona seria atingida, alegando ter como alvo instalações do Hamas. Agora estão a “perseguir” as pessoas, é a expressão utilizada pelo activista e advogado. “Não há consideração pelas vidas civis. É uma escolha. E é por isso que falamos de genocídio: porque há uma intenção, um plano; e esse plano é implementado.”
Desde 7 de Outubro, na Faixa de Gaza
Recorda as declarações do ministro da Defesa israelita, Yoav Gallant, a 9 de Outubro: “Dei ordens para um cerco total à Faixa de Gaza. Não haverá electricidade, nem comida, nem combustível, está tudo encerrado. Estamos a lutar contra animais humanos e agimos em conformidade.”
Mais recentemente, o ministro da Segurança Interna, Itamar Ben-Gvir, elogiou o “trabalho excepcional” do soldado israelita que “neutralizou uma ameaça” no campo de refugiados de Shufat, em Jerusalém Oriental: um rapaz de 12 anos, morto com um tiro no peito.
“Saúdo o soldado que matou o terrorista que tentou disparar fogo-de-artifício contra ele e as nossas forças. É exactamente assim que se deve actuar no combate aos terroristas — com determinação e precisão”, disse, no início de Março, o governante de extrema-direita.
Se em Gaza vivessem 10,4 milhões de pessoas, como em Portugal, e a percentagem de vítimas mortais se mantivesse, já teriam sido assassinadas 156 mil, desde 7 de Outubro. Mantendo a comparação proporcional à população portuguesa, já teriam sido mortas 65.500 crianças.
Um outro trabalhador humanitário ouvido pelo PÚBLICO, que pediu que esta frase não ficasse associada à organização em que trabalha, vê dois cenários possíveis: “Ou Israel é totalmente incompetente, o que acho pouco provável, ou está a agir deliberadamente. Não há outra explicação.”
“Um povo sem direito à fuga e ao asilo”
De mais de 30, sobram apenas 12 hospitais parcialmente funcionais na Faixa de Gaza, “se é que lhes podemos chamar funcionais”, nota Amber Alayyan, uma das coordenadoras da Médicos Sem Fronteiras (MSF) no Médio Oriente. Não hesita ao considerar que o sistema de saúde de Gaza está a ser, sistemática e deliberadamente, destruído por Israel.
Em conferência de imprensa, a 4 de Abril, contou o que viu em Gaza: a grande maioria das pessoas que chega aos hospitais é vítima de bombardeamentos e explosões. Muitos ficam presos sob escombros enquanto as chamas se alastram. O resultado são lesões por esmagamento no tórax e abdómen e queimaduras graves. Sem cuidados de saúde adequados, a amputação de membros torna-se, em demasiados casos, inevitável.
“Os hospitais ainda a funcionar estão tão cheios que há cirurgias feitas no chão e os doentes recebem ‘alta’ logo a seguir porque não há espaço para internamento”, relata. “Isto passa-se há meses, as feridas das pessoas estão, literalmente, a apodrecer, o cheiro é muito forte. E nem sequer conseguimos perceber que tipo de infecções estamos a tratar.”
Quanto às mulheres grávidas, não há tempo para recuperação pós-parto. “Assim que conseguem andar, têm de sair. Nem sequer conseguimos apoiá-las na amamentação”, lamenta Amber Alayyan. “Para amamentar, uma mulher não pode estar subnutrida. Se não conseguir amamentar, usa leite em pó. Mas, para isso, precisa de água potável. E nada disto está disponível em Gaza.”
Karen Beattie trabalha no mesmo cenário, questionando-se vezes sem conta: “Porque é que o povo palestiniano é o único no mundo que não é elegível para ser refugiado?”
“Mesmo que conseguissem sair de Gaza, para onde iriam? Nunca nenhum país se chegou à frente e disse: ‘Deixem-nos sair e nós recebemo-los’. Fizemos isso com os ucranianos, com os afegãos, com os sírios, até certo ponto”, diz, sem respostas. “Porque é que os palestinianos não merecem o mesmo?”
“Israel considera-se acima da lei”
Em 1948, uma linha verde foi traçada num mapa para dividir a Palestina e dar lugar a um novo Estado: Israel. Durante toda a vida, Khaled Quzmar viu essa fronteira ser militarizada, ocupada e apagada pelo regime israelita. Teve também vista privilegiada sobre as reacções que chegavam de fora. “Não conheço nenhum país que receba da comunidade internacional o mesmo tratamento que Israel. Israel considera-se acima da lei.”
“Não parece existir vontade política para responsabilizar o regime israelita pelos seus crimes. Mas, mais grave do que isso, enquanto Israel comete um genocídio, os Estados Unidos, Alemanha e Reino Unido continuam a enviar armamento. São cúmplices dos crimes cometidos em Gaza”, acusa o director da Defense for Children Palestine.
Também Bill Van Esveld considera “absurda” a relação dos Estados Unidos com Israel, e defende um embargo de armas, “não só as enviadas para Israel, mas para todos os envolvidos nesta guerra, como o Irão”. “A prioridade agora é manter as crianças vivas. Mas ainda precisamos de garantir que há um amanhã em Gaza.”
Das crianças de Rafah, Karen Beattie ouve desejos para esse amanhã. Um rapaz com talento para o futebol sonha com uma carreira internacional para doar todo o dinheiro à Palestina. Os mais pequenos perguntam por chocolates. Muitos só querem rever a família, regressar a casa, ao quarto e à cama que eram seus. Talvez guardem, como fizeram os seus avós, as chaves dessas casas, mesmo que já não existam para lá da última memória guardada: a do dia em que fugiram.