Celebração da travessia aérea Lisboa-Macau: na esteira do “Pátria”, 100 anos depois

Foi no dia 7 de Abril de 1924 que começou a histórica travessia aérea Lisboa-Macau. Com o início das comemorações no Museu do Ar, republica-se, revisto pelo autor, um artigo saído no PÚBLICO em 1999.

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Sarmento de Beires e Brito Paes junto ao “Pátria” DR
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“Os Portugueses somos do Ocidente Imos buscando as terras do Oriente”
Luís de Camões, “Os Lusíadas”, canto I, estrofe 50

“(...) se nós, os da Aviação, tomássemos a peito não deixar esquecer os nomes daqueles que à Aviação deram brilho, talvez que os outros, os de fora da casa, se não esquecessem também de nós, como é costume, nem se esquecessem de nos reservar o lugar que nos compete (...)”
Jorge de Castilho

Embora hoje quase esquecida entre nós, e totalmente ignorada pelas bibliografias aeronáuticas estrangeiras, a primeira viagem aérea entre Portugal e Macau, iniciada a 7 de Abril de 1924 pelos pilotos Brito Paes e Sarmento de Beires, deu um contributo para o desenvolvimento da aviação mundial, quanto mais não seja por ter cumprido, com um só aparelho, o primeiro voo entre vila Nova de Milfontes e Carachi, num gigantesco pulo do Atlântico ao Índico.

Estava-se em 7 de Abril de 1924, no sítio de Coitos, uma terrinha atirada lá para baixo, para os confins do Alentejo, algures para os lados da embocadura do rio Mira, onde os sobreiros e as moitas se escapam da paisagem, e a terra desliza em planície mansa, até se fundir com as rochas abruptas e o ruído do mar.

Na madrugada desse dia, os pilotos Brito Paes e Sarmento de Beires, aos comandos do “Pátria”, um desactualizado Breguet XVI BN2, modelo de 1919, equipado com um motor Renault de 300 Cv, adquirido em segunda mão por subscrição pública – um avião de “esmolas” como então lhe chamaram estavam prestes a iniciar uma das mais interessantes jornadas da nossa aviação pioneira, a primeira viagem aérea entre Portugal e Macau.

Brito Paes e Sarmento de Beires eram oficiais do exército e pertenciam ao grupo de esquadrilhas de aviação República, sediado na Amadora. Brito Paes era natural de Colos, no Alentejo e na altura da viagem estava quase a completar 40 anos. Tinha o “brevet” passado pela escola de aviação militar de Avord, França. Sarmento de Beires, por sua vez, era natural de Lisboa, onde nasceu a 4 de Setembro de 1893, e na altura da viagem tinha 31 anos. Foi instruendo de Sacadura Cabral no primeiro curso de aviação em Portugal, em Vila Nova da Rainha.

O aparelho, que inicialmente estivera destinado a tentar a primeira travessia aérea do Atlântico sul, embora seguindo uma rota diferente da que Sacadura Cabral e Gago Coutinho escolheram para o “Lusitânia”, não chegaria, no entanto, cumprir tal objectivo, pois este, sucessivamente adiado, acabaria por perder, com o correr do tempo, toda a razão de ser, quando em 1922, já lá para as bandas do Brasil, o hidroavião “Lusitânia” passeava apoteoticamente os seus dois tripulantes.

Perdido o objectivo inicial, foram surgindo as primeiras ideias de levar um avião português até à Índia – dada a finalidade histórica de tal viagem, ideias que, quase de imediato, se estenderam até Macau e que, num eufórico acesso de optimismo, só compreensível se nos reportarmos ao ano aeronáutico de 1924 – em que tudo podia acontecer se alargaram, desmesuradamente, até uma despropositada viagem de circum-navegação aérea, para a qual o avião não dispunha de autonomia suficiente e os pilotos de meios bastantes.

Um contributo para a aviação mundial

Embora hoje quase esquecida entre nós, e totalmente ignorada pelas bibliografias aeronáuticas estrangeiras, esta primeira viagem aérea entre Portugal e Macau teve o seu valor e, de alguma forma deu um contributo para o desenvolvimento da aviação mundial, quanto mais não seja por ter cumprido, com um só aparelho, o primeiro voo entre Vila Nova de Milfontes e Carachi, num gigantesco pulo, do Atlântico ao Indico, onde, pela primeira vez, se realizou a travessia de todo o Norte de África. Esta proeza, mais difícil do que parece à primeira vista, obrigou o “Pátria” a vencer condições de extrema dificuldade, em que os perigos do calor excessivo e das térmicas traiçoeiras se misturavam com o receio constante de uma “panne” inesperada, ou de uma bala perdida, saída do cano de uma qualquer espingarda de kabila revoltado.

Assim, em caso de uma aterragem forçada, sobre o deserto, o panorama não se apresentava lá muito animador, pois se os não encontrassem, morreriam de sede e se alguém desse com eles, tinham grandes hipóteses de acabar decapitados.

Foi por isso, que na época, tal proeza não passou despercebida e encontrou eco em muitos dos grandes jornais europeus, destacando-se, até, uma entrevista exclusiva, realizada por Stanley Parker, correspondente do Times no Egipto.

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Em Milfontes, pouco antes da partida do “Pátria I” DR

O facto de esta viagem não ser mais conhecida, apesar de toda a divulgação que teve na época, deve-se ao grande incremento que a aviação teve desde então, e que dissolveu, por completo, façanhas como as do “Pátria”, um pouco à semelhança daquilo que hoje se passa com as sondas espaciais que, ao tocarem Marte, parecem tornar menores os escritos e “croquis”, surpreendentemente correctos, que o russo Konstantin Tsiolkovsky passou ao papel em 1898, ou mesmo as façanhas da Vostok I, ou de muitos outros foguetões que lhe sucederam nos vários programas espaciais, norte-americanos ou soviéticos e dos quais já ninguém recorda o nome.

A isto juntar-se-á, ainda, uma certa incapacidade que Portugal tem demonstrado para “puxar lustro” aos galões dourados dos seus valores, não publicitando internacionalmente, com um mínimo de empenho, os feitos dos homens que fizeram os anos de ouro da nossa aviação.

Aliás, a Aviação portuguesa nunca foi alvo de um estudo sistemático e sério. O grande manancial para o seu conhecimento são os jornais da época, e as obras que existem sobre essa temática, devem-se, quase todas, ao empenho de alguns dos protagonistas da “Idade Heróica”, que dela nos deixaram os seus testemunhos.

Entretanto, permanece um vazio no área da investigação da história aeronáutica portuguesa e, enquanto isto, vai-se perdendo a memória de toda uma época, apagada dia-a-dia pelo dedo implacável do tempo, fazendo desaparecer fotografias e outros testemunhos, para os quais não houve espaço para a sua sobrevivência.

Relembrar esse tempo é voltar a uma época aventurosa e breve, em que o mundo girava depressa e viver era mais importante que a própria vida.

“Condor gigante de alumínio e seda”

Naquela madrugada de 7 de Abril, não foi só o “Pátria” que partiu de Vila Nova de Milfontes. Com ele seguiram os sonhos de todo um povo que, mesmo na pobreza, soube encontrar os meios para levar um avião até aos confins do Oriente. Os momentos que então se viveram, só quem passou por eles lhes conhece o contorno das palavras. É o caso do próprio Sarmento de Beires, que relata a experiência no seu livro De Portugal a Macau, editado pela Seara Nova em 1925:

“É preciso ter vivido esses momentos, ter visto a manhã mal transparecendo ainda através da noite moribunda, ter ouvido essas vozes que, veladas, diziam não sei o quê na sombra em que as formas mal se distinguiam! (...) É preciso ter ouvido o relinchar sonoro da Boneca, a égua inteligente que, puxando a frágil carrinha alentejana, nos levou, pelo caminho sinuoso e estreito, à esplanada cortada a prumo sobre o mar. Lá em cima, era a noite ainda noite brumosa a desabrochar em pálidas claridades foscas. O Pátria, condor gigante de alumínio e seda, recortava-se na sombra agonizante, como fantasma estranho. Parecia outono. Cheirava a terra húmida. Andavam pelo espaço profecias mudas... Gente, muita gente, não sei quanta. Xailes, lenços, vultos masculinos, crianças. (...) Alguém quis escrever o seu nome na tela do avião (...) e outro, e outro... São dezenas de almas a prender-se, a esconder-se na fuselagem, para sofrer, morrer ou triunfar connosco... Num gesto, que fazia lembrar outros gestos vindos do passado, o pai de Brito Paes tirou do dedo o anel onde se espelhava o brazão da família e entregou-o ao filho.

– Vamos!

Quem disse a palavra? nem sei... Há segundos que são vácuo na memória (...) tomamos os nossos lugares (..) seis horas e dois minutos (...) lentamente, muito lentamente, como se lhe custasse aquele adeus à terra portuguesa, o Pátria começa a rolar na primeira luminosidade pérola da manhã. E ao fim de oitocentos metros de corrida solta-se do terreno macio e húmido, aproando a Oriente, a um sol que não nasceu ainda, mas que das bandas de Espanha, dispara já as suas claridades frouxas, por bombordo, um aguaceiro espesso desaba sobre a serra do Cercal. E pouco depois o ronco do Pátria desaparecia entre as nuvens.”

A aventura começara. Os calendários marcavam 7 de Abril. No livro de bordo lia-se “De Portugal a Macau – dia 1”. Só terminaria dois meses depois, a 20 de Junho, com uma aterragem forçada em Shum-chum, em território chinês, dada a impossibilidade de aterrar em Macau devido a condições atmosféricas adversas. Ao longo da viagem, que passou por inúmeras paragens (Málaga, Cairo, Bagdad, Carachi, Calcutá, Rangum, Banguecoque, Hanói), o avião teve de ser substituído por outro, de fabrico inglês, um Haviland DH9, baptizado como “Pátria II”.

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