O design é uma “arma”

O logo de Eduardo Aires permite a utilização digital com altura mínima de 20 pixéis, para além de caber num lápis da Viarco. Quantos logótipos têm esta escalabilidade?

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Adaptação do logo de Eduardo Aires Telma Tavares
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Poucas horas depois de a AD ter tomado posse como XXIV Governo Constitucional, a 2 de Abril de 2024, houve uma mudança no logótipo oficial do governo, um retrocesso para a imagem antiga, que incorpora símbolos da bandeira nacional como os sete castelos, as cinco quinas e a esfera armilar. O logo “Governo de Portugal” foi desenvolvido em 2011, pela Brandia Central, a pedido do gabinete de Miguel Relvas, Executivo de Pedro Passos Coelho.

No manual de normas da marca “Governo de Portugal” lia-se que “funciona como um reforço da auto-estima dos portugueses e do orgulho no seu país” e que as cores “atribuem carga institucional e apelam ao patriotismo”.

Em Junho de 2023, foi apresentada uma nova identidade gráfica para a República Portuguesa, desenvolvido pelo designer Eduardo Aires com tipografia de Dino dos Santos. Ambos profissionais com trabalho premiado e reconhecido a nível internacional. O design deste logótipo previa a sua utilização uniforme em todos os ministérios e organismos da República.

A nova imagem foi usada durante todo o Verão, incluindo nas Jornadas Mundiais da Juventude e na comunicação dos diferentes organismos do Estado. E não se ouviu uma crítica. Até nos aproximarmos das eleições legislativas de Outubro de 2023. Começou o burburinho nas redes sociais sobre:

  1. Terem abandonado os símbolos nacionalistas e colonialistas da bandeira e por isso ser “woke”
  2. Ser demasiado simples que “até uma criança de quatro anos faria no Paint
  3. O valor que custou, 74 mil euros mais IVA, ser considerado demasiado elevado
  4. A designação que passou de “Governo de Portugal” para “República Portuguesa”

Vamos analisar todas as críticas, ponto por ponto.

Primeiro, a simbologia nacionalista como ferramenta da extrema-direita

Assistimos a nível mundial ao crescimento da extrema-direita e Portugal não é excepção. Uma das principais características dos seus simpatizantes/militantes é a adopção de simbologia nacionalista do seu país e o seu endeusamento. Basta vermos os EUA em que os apoiantes de Trump usam merchandising com a bandeira americana associada ao “Make America Great Again”, numa apologia ao retrocesso, ou o Brasil, em que os bolsonaristas se vestem com camisolas da selecção brasileira e envergam inúmeras bandeiras do país, tanto nas manifestações como nas redes sociais.

Quem é activo no Twitter sabe que contas de extrema-direita se apresentam com handles acompanhados da bandeira nacional, que também costuma estar presente na imagem de perfil. E que o Chega se apresenta nas ruas a envergar símbolos nacionalistas. E que apelam ao racismo e xenofobia com frases como serem “esteticamente superiores”. É esta a narrativa e o motivo porque atacaram o logo da República Portuguesa de tal forma que até o designer Eduardo Aires recebeu ameaças. O populismo, o saudosismo do Estado Novo, dos descobrimentos, do colonialismo, dos tempos da “outra senhora”. Esta possidonice e retrocesso ao logo “Governo de Portugal” não é mais que um piscar de olho da AD aos eleitores do Chega.

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Segundo, a simplicidade no design não tem uma conotação negativa

Um logótipo é uma representação simbólica de algo, é um exercício de simplificação, de síntese. Não é fácil ser designer, diria mais, não é fácil ser de artes porque há uma falta de respeito pelo nosso trabalho e pelas nossas capacidades, experiência, anos de estudo. Um logótipo não é uma bandeira. Houve um processo criativo para o tornar legível e inclusivo. Não foi pegar num lápis e fazer um boneco.

Vou dar como um exemplo um dos designers gráficos mais conceituados de sempre, o norte-americano Milton Glaser, criador da imagem “I (love) NY”, logo oficial da cidade de Nova Iorque, desenvolvido em 1976. O brasão de Nova Iorque, e a bandeira que incorpora o brasão, têm uma série de pormenores (a águia por exemplo é um símbolo nacionalista) que foram completamente postos de parte quando foi desenvolvido. Teria sido Milton Glaser atacado por populistas em 1976 por ter criado este logo? Não creio.

Não se pode dizer que o logótipo não cumpre a função sem termos lido o briefing e sem termos em conta cada um dos passos do processo criativo. E o mais provável é ter sido pedido um logo simples e de fácil interpretação e reprodução. Segundo o que diz Eduardo Aires em entrevista ao PÚBLICO, a sua simplificação é mesmo intencional e que “a imagem do Porto ou a imagem do Governo da República Portuguesa são imagens extremamente fáceis de memorizar e copiar. É óbvio que na ausência de literacia visual se pode afirmar que o projecto se faz no Paint em cinco minutos por qualquer criança.”

Estamos numa era digital e o logo do Governo de Portugal não serve. Torna-se ilegível a partir de determinado tamanho, está datado, tem uma série de ruído visual com pormenores desnecessários que só atrapalham a sua utilização e interpretação, tem demasiadas cores. E não só no digital, em impressão também tem os mesmos problemas (em formatos mais pequenos). Já o logo de Eduardo Aires permite a utilização digital com altura mínima de 20 pixéis, para além de caber num lápis da Viarco. Quantos logótipos têm esta escalabilidade?

Ricardo Mealha, criador da identidade Ministério da Cultura, com o monograma M e um C, desenvolvido em 1997, que foi substituído pelo logo do Governo de Portugal, defendia "um consenso e proponham uma nova organização para a imagem do Estado português, válida para os próximos 20-30 anos".

Na minha opinião, o logo desenvolvido por Eduardo Aires cumpre este propósito. É pensado para o digital, permite jogar com as suas formas, as cores, fazer animações. Se lhe tivéssemos dado mais tempo veríamos o seu potencial. Uso como exemplo a animação que fiz para a comemoração dos 50 anos do 25 de Abril, de onde surgiu o convite para escrever este artigo.

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Telma Tavares

O valor da identidade gráfica

74 mil euros mais IVA. Fiz o meu estágio profissional numa agência de publicidade em 2004, há vinte anos. Na altura estava a ser implementada a nova identidade gráfica de uma instituição pública e falava-se do valor pago à agência ser cerca de um milhão de euros. Isto num meio onde os designers eram mal pagos, onde não havia horários, nem por vezes fins-de-semana. Basta consultar o site da identidade gráfica “República Portuguesa” para ver o manual de normas e perceber o trabalho hercúleo que este projecto deu. E que ainda teve uma tipografia desenvolvida pelo mais conhecido e prestigiado tipógrafo português, Dino dos Santos, que criou caracteres que podem ser usados em 250 línguas.

A criação de uma identidade gráfica dá muito trabalho e cumpre uma metodologia. Existem diversos métodos e podia também dar como exemplo as metodologias de Bruce Archer, Gui Bonsiepe, ou outros, mas vou pegar no livro que tenho mais à mão e referir Bruno Munari (Design e Comunicação Visual, Artes e Comunicação, Edições 70): enunciação do problema (briefing), identificação de aspectos e funções (verificação técnica/económica – física; verificação cultural/histórica/geográfica - psicológica), limites (tempo de duração; partes existentes; regulamentos; mercado), identificação dos elementos do projetco, disponibilidade tecnológica (materiais; instrumentos), criatividade/síntese (código dos fruidores), modelos, primeiro exame, soluções possíveis (a mais simples), programação do projecto, protótipo. E quando o cliente não aprova o protótipo há por vezes a necessidade de voltar ao segundo passo e fazer tudo de novo. E repetir até ser aprovado. Horas de trabalho, vários profissionais envolvidos. 74 mil euros é um valor bem razoável.

Quarto, a designação

Em 2016, após tomar posse como primeiro-ministro, António Costa decidiu alterar a designação “Governo de Portugal” para “República Portuguesa”, considerando “o Estado português no seu todo e não apenas uma parte deste”, não mudando a totalidade da imagem (manteve o logótipo), mas o texto, sem “custos adicionais”.

O logo desenvolvido em 2023 “República Portuguesa” incorporou esta nova designação depois de sete anos a ser usada, não faz sentido esta ser uma das críticas à nova identidade gráfica. Houve em 2016 algum incómodo com a nova designação por parte do PSD, será este retrocesso à imagem antiga uma vendeta?

Esquerda vs direita, progresso vs retrocesso

Não faz sentido sempre que mudarmos de governo mudarmos de logótipo institucional. Isto tem impacto na imagem que se projecta dentro e fora de Portugal. Para além da pegada ecológica gigante, dos custos associados a este tipo de mudanças é também um golpe que se desfere na auto-estima dos funcionários do Estado, que trabalham e primam pela missão de serviço público. E que depois da alteração em Junho de 2023 vão ter de alterar tudo novamente. É uma decisão que descredibiliza, desvaloriza, desgasta.

É uma alteração por motivos puramente ideológicos, não servindo nenhum propósito senão o populismo.

Escrevo este artigo a 20 dias do 25 de Abril. Foi lançada uma petição, que assinei, da autoria de um director criativo “Contra a Reversão da Nova identidade Visual do Governo de Portugal”, porque “Portugal merece uma identidade que espelhe o seu legado histórico e a sua dinâmica contemporânea, uma identidade que nos propulse para o futuro, não que nos arraste para o passado.”

Para a frente é que é o caminho. Ao logo da “República Portuguesa”, um até já. Que façamos Abril e que adoptemos a adaptação do logo de Eduardo Aires como nosso cravo na celebração dos 50 anos do 25 de Abril.

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