Rabo de Peixe tirou as Receitas do Baú para matar os estigmas

A propósito do festival Tremor, fomos a Rabo de Peixe conhecer-lhe as tradições à mesa. Da sopa de netos à caçoula, passando pelo caldo de peixe, há boas razões para se falar bem da vila açoriana.

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Almoço comunitário em Rabo de Peixe, na casa da Mónica (na foto) paulo pimenta
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Grimoalda tempera a abrótea. "Logo são filetes, amanhã ao almoço é peixinho grelhado." O peixe foi Maria José quem o comprou. Desta vez comprou a mais, para durar para a semana toda. Com os romeiros na estrada, a calcorrearem as igrejas e ermidas de São Miguel, poucos foram os homens que ficaram em Rabo de Peixe para saírem com os barcos para o mar. Ao todo, abalaram 129 homens em promessa, o maior grupo de toda a ilha, nesta que é uma tradição da época da Quaresma que remonta aos séculos XV e XVI.

Mas essa não foi a única razão para Maria José ter enchido o frigorífico de peixe fresco. Com o festival Tremor a decorrer entre 19 e 23 de Março (outra espécie de promessa para outro tipo de peregrinos), a senhora de 72 anos terá jantares lá em casa quase todos os dias. "Amanhã à noite será caçoula", diz-nos, mostrando-nos uma travessa de entrecosto a repousar na marinada. "É temperado de véspera com pimentão-doce, vinho e banha amarela". Usa a amarela para a caçoula, porque tem mais sabor, explica-nos. A branca guarda para a massa sovada, o pão doce cozido em folha de inhame, que, por alturas da Páscoa, leva ovos no topo e é chamado de folar.

De entrada, servirá pé de torresmo, outra especialidade do concelho de Ribeira Grande, ao qual pertence Rabo de Peixe, que é feito com carne de porco, vinho, alho e especiarias. "Eu acrescento queijo da Ilha", ressalva, incitando-nos a provar a iguaria com pão de milho, que outrora todas as mulheres faziam em casa. Grimoalda, afastando-se momentaneamente da abrótea, aproveita para lembrar um dizer da sua infância: "Se a mãe ficava doente, não havia pão pra gente". Hoje ainda há quem o faça de forma tradicional, no forno a lenha, como a senhora Lurdes da Rua do Rosário, que o tem sempre fresco à sexta-feira.

A conversa vai-se cozinhando ao sabor das Receitas do Baú – À Nossa Mesa, iniciativa da Associação de Solidariedade Social VidAçor que, de há três anos para cá, tem animado o Tremor. "Promovemos jantares com receitas tradicionais, que passam de geração em geração e que já não se encontram nos restaurantes." Nesse sentido, refere Marlene Costa, representante da VidAçor, as Receitas do Baú são um projecto transgeracional, ligado ao comércio local, que visa dar algum rendimento às famílias anfitriãs, promovendo o encontro entre os locais e os que aterram na ilha para o festival. "Rabo de Peixe é uma vila muito estigmatizada. Com este tipo de iniciativas, queremos esbater essa premissa."

“Isto que se vive aqui é quentinho”

Para Grimoalda, nascida orgulhosamente "rabichinha" há 55 anos (e há 35 a trabalhar em casa de Maria José), não há melhor lugar para viver do que esta terra "festeira e de muita fé" que é Rabo de Peixe. Terra "de boa gente e laboriosa, voltada continuamente para os campos que trabalha amorosamente e para o mar de onde arranca, muitas vezes com laivos de tragédia, o seu e o nosso sustento", escreveu António Pedro Rebelo Costa no livro A nossa memória colectiva: Rabo de Peixe – 500 anos de história (2003).

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Em Rabo de Peixe a Cozinha Comunitária do Tremor paulo pimenta

Quando o sustento era pouco, faziam-se pratos como a sopa de netos, aquela que Grimoalda mexe ao fogão, enquanto as memórias lhe saem dos olhos a brilhar: "Era a sopa das nossas avós", conta. À falta de pão, faziam-se umas bolas de farinha de milho que eram atiradas para o caldo, previamente apurado com os enchidos resultantes da matança do porco e com as couves do quintal. "A minha avó dizia, ‘vou meter os meus netos na panela’, e a miudagem, animada com a tropelia, ficava a olhar para as bolas de farinha a boiar, imaginando a que neto pertencia cada bola.

A sopa que Maria José preparou para o Tremor leva as carnes à parte, "porque muita gente agora não come carne". Há receitas que dá para adaptar à alimentação vegetariana, outras, como o feijão com dobrada ou o polvo guisado com vinho de cheiro (chamado noutras zonas do país de morangueiro ou americano), não têm como fugir à cartilha. "Faço estes jantares pelo convívio e para conhecer pessoas novas", comenta a anfitriã, participante desde a primeira edição nas Receitas do Baú. Em 2022, a VidAçor vendeu 60 bilhetes (na altura a 30€). Este ano, foram 120 a 40€ por comensal. "O Tremor acarinha-nos bastante", diz Marlene Costa, esclarecendo que as receitas geradas vão na totalidade para as famílias. "Isto que se vive aqui é quentinho e é uma oportunidade de se falar bem de Rabo de Peixe."

Um caldo que quer vir a ser confraria

Se há quem fale pelos cotovelos e sem papas na língua, esse alguém é Mónica Silva, ela que até nasceu na vila de Capelas, mas que se mudou para Rabo de Peixe por conta do marido. Mónica gosta da arte de bem receber e, por isso mesmo, dá as boas-vindas aos convidados pela porta da cozinha, a entrada reservada para as pessoas a quem se quer bem. "Decorámos a casa para o Tremor", assegura com vaidade, mostrando os seus presépios de lapinha, uma construção delicada a partir de pequenas conchas, flores, escamas de peixe, musgo, que representa uma tradição secular da ilha de São Miguel.

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Mónica, que é cake designer de profissão (e, por isso mesmo, conhecida como "Mónica dos Bolos"), participou pela primeira vez nas Receitas do Baú há um ano. "O Tremor veio-nos dar famílias diferentes e abrir horizontes na economia e na sociedade", refere, de tal forma que esta empresária de 44 anos criou um negócio a partir desta experiência. Chama-se Casa da Família e em tudo é parecido com as Receitas do Baú, com a diferença de contar com a participação de cidadãos de Rabo de Peixe nos serões, que ali partilham as suas histórias de vida.

As marcações fazem-se à moda antiga, ou seja, por chamada (914 149 387): "As pessoas têm que ligar e ouvir-me ao telefone". Não há cá plataformas ou mecanismos impessoais. Na ementa estão sempre garantidos pratos tipicamente açorianos, como os chicharros fritos, o assado misto com galinha caseira, carne de porco e de vaca (muito comum numa mesa de Páscoa) ou a sopa de peixe, tudo temperado com uma pitada de pimenta da terra. "O que não leva pimenta da terra, não é açoriano", decreta prontamente. A partir de Junho, Mónica já tem a agenda praticamente preenchida, mas com sorte encaixa-se mais um lugar à mesa.

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No Verão, Rabo de Peixe anima-se com outra iniciativa gastronómica que quer valorizar um dos grandes pitéus da região: o caldo de peixe. O tradicional caldo rabo-peixense, chamado à pescador, fazia-se com batata e com os peixes considerados menos nobres, como a cavala, o chicharro ou o peixe-porco, que antigamente era pouco valorizado. O que se provará no Festival do Caldo de Peixe, que decorre entre 26 a 28 de Julho, no Porto de Pescas de Rabo de Peixe, será certamente mais parecido com aquele que pudemos saborear na Cozinha Comunitária do Tremor, a outra acção integrada nas Receitas do Baú, que junta os festivaleiros num verdadeiro arraial popular.

Abeirando-se do caldo que esteve 14 horas ao lume, Cidália, a cozinheira de serviço, explica-nos a receita. "A base é de cebola, alho, pimentão e salsa", quatro ingredientes que fazem um festim numa enorme panela de "João Ratão". Junta-se depois o caldo da cozedura dos peixes, deixa-se apurar demoradamente, põe-se o arroz (que com o tempo veio substituir a batata) e só mesmo no finalzinho é que se acrescenta o peixe desfiado, para não secar ou entesar.

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Rúben Farias, representante da Cooperativa Aqua, que promove o Festival do Caldo, explica que nesses três dias os visitantes terão a oportunidade de provar diferentes interpretações do caldo, do mais tradicional ao de autor. "Queremos valorizar o nosso pescado e a nossa terra, promovendo uma economia solidária, sustentável e com valor cultural", diz. Com o tempo, talvez venha a surgir uma Confraria do Caldo, mas isso é tema para outros arraiais. O importante agora, refere, é consolidar o caldo e o seu valor patrimonial.

Marlene Costa entusiasma-se com estas iniciativas – quer as associadas ao Tremor, quer as da Cooperativa Aqua, que tem uma agenda activa ao longo do ano. A assistente social sabe que os estigmas não são ultrapassados de um dia para o outro, mas aos poucos as acções vão colhendo os seus frutos. "Isto que se tem feito aqui não é mais do mesmo. É maravilhoso para a auto-estima das pessoas. As famílias estão contentes." E se formos acreditar nas palavras de Mónica Silva, quando uma pessoa está contente em Rabo de Peixe, todas estão felizes. "Somos uma comunidade muito unida."

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