Mais de 90% das crias da espécie de ave marinha Calonectris borealis já apresentam plásticos no estômago quando deixam os ninhos, tanto em Portugal como em Espanha, revela um estudo publicado este mês na revista científica Environment International. O trabalho propõe a utilização desta espécie de cagarro como um bioindicador da contaminação plástica no Atlântico Norte.
“Os cagarros juvenis que analisámos ainda não se alimentavam por si próprios. Eles morreram quando estavam a sair do ninho. Portanto, os plásticos que eles têm no estômago foram transferidos durante a alimentação [assegurada] pelos pais. Ou seja, adultos dão de comer às crias e assim transferem os plásticos”, explica ao PÚBLICO Yasmina Rodríguez, primeira autora do artigo e investigadora do instituto Okeanos da Universidade dos Açores.
As conclusões revelam um dos valores mais altos encontrados até hoje por cientistas em cagarros, quando se comparam com os valores obtidos noutros estudos com outras espécies de cagarros em diferentes regiões. “Nós já estávamos à espera que as percentagens de frequência de ingestão fossem altas. Mas, em comparação com outros estudos, são percentagens muito altas: 90% dos juvenis apresentavam plástico”, diz a cientista.
Yasmina Rodríguez explica que a ordem de aves na qual os cagarros se inserem (Procellariiformes) tende a acumular grandes concentrações de plástico por causa da morfologia do estômago. Ao contrário das gaivotas, por exemplo, os cagarros não são capazes de regurgitar elementos que não conseguem digerir. Aquilo que não for passível de ser bem triturado na moela (estômago mecânico), acaba por ficar alojado no órgão, uma vez que o desenho do tubo digestivo não permite que os plásticos sejam expelidos pela boca.
“Nesta espécie da ordem dos Procellariiformes, o estômago está dividido em duas partes, uma primeira cavidade chamada proventrículo e a segunda é a moela. A passagem entre o proventrículo e a moela é muito estreita. Então estas aves não regurgitam coisas que são indigestíveis, como por exemplo bicos de lula, espinhas de peixe e plásticos”, esclarece a investigadora.
O trabalho consistiu na análise da ingestão de plástico em filhotes e adultos de cagarros mortos, recolhidos ao longo de oito anos (2015 a 2022) em dois arquipélagos ibéricos: o dos Açores, em Portugal, e o das Canárias, em Espanha. As 1238 aves estudadas pelos cientistas já estavam mortas quando foram levadas para o laboratório, tendo sido na sua maioria vítimas de acidentes associados à poluição luminosa.
Como esta espécie só nidifica no escuro, as luzes artificiais tornam-se um grande desafio para os cagarros “bebés”. Ainda não é claro por que razão a iluminação nocturna constitui um obstáculo para a espécie, explica Yasmina Rodríguez, mas os cientistas aventam a hipótese de as aves juvenis ficarem desorientadas ou sentirem-se atraídas pelo brilho. Entre as possíveis consequências trágicas estão quedas e choques.
“Quando saem do ninho para realizar a viagem até ao mar, os juvenis enfrentam a poluição luminosa. Apesar das campanhas de resgate que há nos Açores, nas Canárias e na Madeira, parte deles não sobrevive. Embora muitos sejam salvos, há uma percentagem que sofre colisões, ou são atropelados ou mortos por animais domésticos”, explica Yasmina Rodríguez numa chamada telefónica com o PÚBLICO.
Um novo bioindicador?
Os autores afirmam no estudo da Environment International que a Calonectris borealis pode funcionar como um indicador dos níveis de lixo marinho no Atlântico Norte. Os bioindicadores são espécies capazes de fornecer informação sobre condições ambientais associadas a contaminantes de origem humana. Neste caso, os poluentes estudados são minúsculos fragmentos de plástico que flutuam nos oceanos.
O estudo sublinha que a informação recolhida junto das aves açorianas sugere que estas seriam capazes de monitorizar alterações na composição dos artigos de plástico que flutuam no Giro Subtropical do Atlântico Norte. Os resultados sugerem ainda “uma maior contaminação nas zonas de alimentação do Noroeste de África, perto das Canárias”, lê-se, e “destacam a pesca como uma fonte potencial de lixo marinho naquela região”.
“O que este estudo tem de relevante foi termos conseguido, dito de uma forma simples, uma ‘receita’ para os governos poderem implementar um programa de monitorização a longo prazo. Há muitas espécies que têm sido já promovidas como bioindicadores, mas só no papel. Não foi estabelecido um valor limite a partir do qual podemos dizer se estamos ou não num bom estado ambiental. Com este artigo, estamos a dar todos os pormenores que seriam necessários para implementar um programa de monitorização que dê respostas às directivas europeias, como a Directiva Quadro Estratégia Marinha”, diz Yasmina Rodríguez.
Actualmente, o fulmar do Norte (Fulmarus glacialis) é “a única espécie na Europa que está a ser efectivamente utilizada como um indicador num programa de monitorização estável”, refere Yasmina Rodríguez. Agora, esperam os cientistas, o cagarro pode tornar-se um bioindicador ibérico, ou seja, nos mares do sul da Europa.
“O que nós agora pretendemos é que os governos da Espanha e de Portugal implementem um programa idealmente similar, já com esta ‘receita’ que nós conseguimos elaborar a partir destes oito anos de estudo”, sugere a cientista.
“Os juvenis vítimas da poluição luminosa oferecem uma amostra não invasiva, facilmente acessível, o que os torna cientificamente úteis, a longo prazo, para programas de monitorização do lixo marinho, implementadas pelos Governos destas Regiões Autónomas de Portugal e de Espanha, no quadro das políticas europeias, nomeadamente da Directiva Quadro Estratégia Marinha”, acrescenta Christopher Pham, investigador do Instituto Okeanos e supervisor do estudo, citado numa nota de imprensa.