Decoração como arma
Quando ele não estava a ver, costumava mexer levemente na decoração da casa de modo a corromper a simetria e o equilíbrio estético aborrecido.
Gosto de ouvir as sereias das ambulâncias, disse o Eduardo. Esse, comentou a Ana, é um gosto demasiado estranho, até para ti. O som, disse o Eduardo, dá-me uma sensação de que a sociedade funciona, que há amparo social, que importamos todos, há uma série de dimensões sociais que se concentram nesse ruído, um barulho tão elementar como um tinoní. E precisas, perguntou a Ana, de ambulâncias a passar para teres essa sensação? Especialmente à noite, continuou ele, quando tudo parece mais ameaçador. A Ana, sentada na cama, levou as mãos à cabeça. Preciso de beber um café, disse ela, levantando-se, mas necessito dum duche primeiro. Ao pegar na roupa que usara na noite anterior, levou o casaco ao nariz, isto precisa de arejar, disse, tresanda a fumo, não me lembro de nada, de quase nada do que aconteceu ontem desde que chegámos à discoteca, não faço ideia a que horas regressámos a casa, mas, pelo tamanho da minha dor de cabeça, deve ter sido bastante tarde. O Eduardo levantou-se para endireitar um quadro, não suportava quadros tortos, assim como outras assimetrias. A Ana sorriu ao vê-lo concentrado naquela minudência, sorriu ao ver o Eduardo afastar-se para ver se a correcção fora plenamente conseguida e aproximar-se depois para dar um toque final. A Ana sorria porque, quando ele não estava a ver, costumava mexer levemente na decoração da casa de modo a corromper a simetria e o equilíbrio estético aborrecido, criando no Eduardo um desconforto constante, materializado nuns centímetros mais para a esquerda ou mais para a direita na posição de um dos candelabros da sala ou no pequeno desvio do nivelamento de um quadro ou ainda uma colher de sobremesa arrumada na divisória das colheres de sopa. Votamos depois de almoço?, perguntou a Ana, pode ser, respondeu o Eduardo. Não gosto, disse ele à Ana quando iam a sair, desse vestido.
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