Degelo está a atrasar a rotação da Terra e isso influencia os segundos do relógio

Aquecimento global e outros processos geofísicos estão a afectar a rotação da Terra. Apesar de o fenómeno ser imperceptível aos humanos, há riscos que preocupam os especialistas da medição do tempo.

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O gelo da Gronelândia tem alimentado os oceanos com consequências para a rotação da Terra Nick Cobbing/Greenpeace/Reuters
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O degelo que está a ocorrer nos pólos da Terra, devido às alterações climáticas, está a afectar a velocidade com que o planeta gira em torno de si próprio, o que deverá influenciar os ajustes que se fazem aos relógios, mostra um artigo publicado nesta quarta-feira na revista Nature. “O aquecimento global está já a afectar a contagem do tempo”, resume Duncan Agnew, autor do artigo e geofísico da Universidade da Califórnia, em San Diego, nos Estados Unidos.

A velocidade da rotação da Terra não é um fenómeno tabelado, está sujeito a processos geofísicos. Embora aqueles processos provoquem pequeníssimas alterações na velocidade da Terra, que passam despercebidas aos humanos, são detectáveis pelos relógios atómicos e têm impacto na contagem do tempo, cujos ajustes afectam as mais variadas expressões da actividade humana, tais como a bolsa de valores, os satélites em órbita, os relógios dos computadores e dos telemóveis.

“Numa escala de tempo de milénios, as mudanças na rotação da Terra reflectem o efeito combinado de três processos geofísicos”, explica Jerry Mitrovica, geofísico da Universidade de Harvard, em Massachusetts, nos Estados Unidos, num dos dois artigos de análise da Nature, que acompanham o novo estudo.

O primeiro é a fricção entre a água dos oceanos e o leito da crosta, que tem vindo a desacelerar a rotação do planeta. O segundo é causado pelo fim da última era glaciar, há cerca de 12.000 anos. Durante aquela era, devido à acumulação de gelo nos pólos, o peso a mais fez achatar as extremidades do planeta. Embora aquela massa a mais já tenha desaparecido há vários milénios, a Terra ainda está a reajustar-se e a voltar a uma forma mais redonda, o que faz aumentar a sua rotação.

Finalmente, o terceiro processo é a interacção entre o núcleo da Terra e o manto e a crosta, que obrigam a reajustes da Terra. Devido à natureza líquida do núcleo externo da Terra, ao longo do tempo há uma mudança na forma como o núcleo interage com o manto, que é predominantemente sólido, o que tem consequências na rotação da Terra.

Segundos positivos

Nas últimas décadas, a combinação daqueles três processos geofísicos tem levado à desaceleração da rotação do planeta. “Desde 1972, irregularidades no movimento da Terra exigiram o acrescento de 27 segundos intercalares – em intervalos irregulares e com um pré-aviso máximo de apenas seis meses”, refere, por sua vez, Patrizia Tavella, do Departamento do Tempo do Gabinete Internacional de Pesos e Medidas, em França, autora do outro artigo de análise da Nature.

O degelo que está a ocorrer por causa do aquecimento global está a interagir com aqueles três processos. As massas de H2O que saem dos pólos e vão alimentar os oceanos acabam por fazer aumentar o seu volume a latitudes mais próximas da linha do equador. Isoladamente, este fenómeno está a fazer desacelerar a rotação da Terra, de acordo com as contas feitas por Duncan Agnew. Mas as contas totais são mais complexas.

A colocação dos segundos extras tem sido um desafio para a metrologia, a ciência que estuda as medições. Desde 1967 que a contagem oficial do tempo é feita por relógios atómicos, devido à sua enorme precisão. Hoje, existem 450 relógios atómicos a fornecer a informação que estabelece o tempo universal coordenado (UTC, sigla em inglês). No entanto, decidiu-se que este tempo universal deveria ter de ser actualizado perante a realidade física da rotação terrestre, algo que tem vindo a ser feito, mas com preocupação.

“Os satélites [de navegação global] têm a bordo relógios atómicos que regulam a sua contagem do tempo, e a inserção de um segundo gera um risco de falhas”, explica Patrizia Tavella. “Talvez o que seja ainda mais importante é que o acrescento de um segundo pode ter efeitos drásticos na infra-estrutura informática num mundo moderno cada vez mais interligado.”

Devido a estes receios, os especialistas em metrologia têm vindo a discutir como diminuir aqueles riscos. Por isso, nasceu uma proposta para se fazer o ajustamento entre o UTC e a rotação do planeta com valores superiores a um segundo. Se, por exemplo, o ajuste fosse feito ao nível do minuto e não do segundo, então os momentos de alteração do UTC seriam muito mais raros e espaçados, e por isso com menos riscos.

Na Conferência Geral de Pesos e Medidas de 2022 foi tomada a resolução de que até 2035 ficaria definida a diferença máxima de tempo que poderia existir entre o UTC e o tempo da Terra. Mas o planeta pode estar a baralhar esta decisão.

Segundos negativos

De meados da década de 1990 para cá, a desaceleração da rotação da Terra tem sido menos notória e a necessidade de acrescentar um segundo extra mais rara. A última vez que o segundo intercalar foi acrescentado ao UTC foi no final de 2016. O novo estudo de Duncan Agnew “demonstra de forma persuasiva” que a interacção entre o núcleo e o manto “tem levado a uma aceleração da rotação”, explica Jerry Mitrovica.

Existem, por isso, dois processos em sentidos opostos. Enquanto o degelo está a levar à desaceleração da rotação da Terra, a interacção entre o núcleo e o manto está a provocar a aceleração da rotação do planeta. Das duas, a força maior é a que está a produzir a aceleração. Segundo os cálculos do novo artigo, se não houvesse o degelo, seria necessário retirar um segundo intercalar ao UTC já em 2026. Com o degelo dos pólos, essa data passaria para 2029. É uma diferença de apenas três anos, mas pode ajudar muito para quem trata destes assuntos.

“Nunca foi adicionado ou testado um segundo intercalar negativo, por isso os problemas que pode causar não têm precedentes”, explica Patrizia Tavella. “Seria necessário calcular a incerteza associada às previsões da rotação da Terra. Essa informação iria permitir que os investigadores avaliassem a probabilidade de ser necessário um segundo intercalar negativo para, assim, se poder antever a existência de uma mudança dessas antes de 2035. Infelizmente, esta continua a ser uma tarefa formidável, por isso a sugestão de Agnew que esta mudança poderá ser atrasada é, de facto, uma boa notícia.”