No seco Algarve, o pomar de sequeiro é a excepção em vez de ser a regra

O pomar de sequeiro — alfarrobeiras, amendoeiras e figueiras — deu lugar a citrinos e abacateiros. Restam algumas excepções num Algarve onde já há cinco séculos havia queixas sobre a falta de água.

Fausto Nascimento afirma ter mais de 180 tipos diferentes de romãnzeiras na sua propriedade em Estoi.
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Fausto Nascimento afirma ter mais de 180 tipos diferentes de romãzeiras na sua propriedade em Estoi Duarte Drago
Fausto Nascimento afirma ter mais de 180 tipos diferentes de romãnzeiras na sua propriedade em Estoi.
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Fausto Nascimento afirma ter mais de 180 tipos diferentes de romãzeiras na sua propriedade em Estoi Duarte Drago
Luís Cavaco queixa-se da falta de água na produção de figueiras e amendoeiras em Castro Marim.
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Luís Cavaco queixa-se da falta de água na produção de figueiras e amendoeiras em Castro Marim Duarte Drago
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O Algarve enfrenta mais uma seca, mas não parece quer mudar estilos de vida e menos ainda o modelo de desenvolvimento. A falta de água é conhecida na região há pelo menos cinco séculos. O que mudou? Pioraram os hábitos de consumo e o clima, cada vez mais agressivo. As culturas tradicionais do pomar de sequeiro deram lugar ao regadio dos citrinos, abacates e outras espécies sorvedoras de água. Os raros agricultores que teimam em defender o património genético da região, cultivando figueiras ou amendoeiras, são olhados como “dinossauros”. A razão é simples: o valor da agricultura mede-se mais pelas exportações do que pelo valor dos serviços agro-ambientais que são prestados à comunidade. No Dia Mundial da Água, olhamos para a região que mais problemas está agora a enfrentar.

O concelho de Castro Marim, colado ao rio Guadiana, é apenas um dos exemplos do modelo de desenvolvimento instalado por toda a região. Numa terra de turismo sem freio, só há lugar para a agricultura se for de valor acrescentado. As culturas tradicionais, a amendoeira, sobretudo, quase desapareceu do mapa.

Só subsistem pomares de sequeiro com alguma coerência no barrocal – “mas é naquele barrocal que não vê o mar, porque o barrocal que vê o mar já foi todo infestado com moradias”, diz José Brito, um dos autores do livro Pomar de Sequeiro/Dieta Mediterrânica, apresentado esta semana pela comissão de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR). O arquitecto paisagista lamenta o modelo de planeamento que permitiu fazer da região uma manta de retalhos especulativa. “Não é a vender figos que se ganha dinheiro, vender terras para urbanizar é mais rápido”, remata.

No sítio de Sobral de Baixo (Castro Marim), Luís Cavaco agarrou numa quinta de cerca de dez hectares e recuperou um pomar de figueiras plantado pela câmara há oito anos, no que tinha sido um projecto-piloto do pomar tradicional algarvio. As culturas tradicionais tinham caído no esquecimento e o que vingou, nos locais em redor, foram os pomares de citrinos e abacateiros. Há três anos, o município decidiu lançar um concurso público para exploração da propriedade. Surgiu apenas uma proposta. “O que é que um homem das telecomunicações faz na agricultura?”, perguntou o presidente do município a Luís Cavaco, empresário no ramo da construção de infra-estruturas para fibra óptica. “Nasci aqui próximo, em Alcoutim, e a agricultura é uma paixão”, respondeu. A “paixão”, relatou ao PÚBLICO, não esmoreceu, mas a paciência já esteve mais longe de se esgotar.

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Luís Cavaco queixa-se da falta de água na produção de figueiras e amendoeiras em Castro Marim Duarte Drago

A propriedade é atravessada pela conduta do perímetro de rega do Sotavento do Algarve, mas o agricultor não está autorizado a utilizar a água da barragem. As figueiras, observa, “só precisam de três a quatro regas por ano”, reclama. Na propriedade ao lado existe um pomar de 12 hectares de abacateiros que pode usar água sem quaisquer restrições. É que, enquanto a rega intensiva foi incluindo no perímetro de rega, o pomar de sequeiro foi excluído da área do aproveitamento hidroagrícola.

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A recusa, invocada pela Associação de Beneficiários do Plano de Rega do Sotavento do Algarve, baseia-se num despacho de 2019, assinado pelo ex-ministro da Agricultura Capoulas Santos, alegando que haveria uma “insuficiente taxa de adesão ao regadio” em áreas em que se tinham feito infra-estruturas com investimento público. Por isso, determinou privilegiar os maiores consumidores, em desfavor de quem, a “título precário” (três ou quatro vezes/ano) precisaria de comprar água. “Não se compreende”, diz Luís Cavaco, lembrando que o Plano de Eficiência Hídrica do Algarve sugere outras políticas: mudar para culturas menos exigentes em recursos.

Uma “biblioteca” que reúne 180 variedades de romãzeiras

Sabe-se de cor o que se deveria fazer com os escassos recursos existentes, mas só alguns trilham esse caminho. “A trabalhar intensamente, nesta estufa (400 metros quadrados) faria dois milhões”, responde Fausto Nascimento, explicando como poderia fazer dinheiro de forma fácil, desvalorizando todas as cautelas ambientais. Mas o arquitecto paisagista optou por fazer agricultura de forma natural. “Aqui, não entram pesticidas”, destaca. E tudo se faz ao ritmo da natureza.

Na quinta, com cerca de 14 hectares, situada em Estoi (Faro), reservou uma parcela de quatro hectares onde criou uma colecção de romãzeiras. “Tenho 180 variedades, vindas de mundo inteiro. Cada vez que viajo, levo sempre uma tesoura de poda”. A recolha de material vegetativo deu origem a uma “biblioteca” com exemplares que se estendem da Rússia ao Irão, passando pela China até aos países mais próximos da orla do Mediterrâneo, Espanha e Marrocos. A evolução das plantas está registada num livro (ainda em esboço): “Um dia há-de ser publicado”. Para já, contempla o mundo que criou em seu redor. “Sabe, o que me dá mesmo gozo é ficar a admirar a sinfonia de cores e sons que a natureza nos oferece”

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As árvores começam a florir. O tempo primaveril manifesta-se. “Os melros já aí andam a saltitar”, observa. Após a nidificação, revela, os adultos em idade de fertilização gostam de mostrar as suas habilidades: “São uma espécie dos F16, em acrobacias”. À medida que vai caminhando, por entre filas de romãzeiras, cada qual com a sua origem, vai abrindo o mapa da geografia afectiva, criado na relação com os amigos: “Esta deu-me o dr. Jasper, um médico francês que tem uma quinta no interior de Aljezur”.

O segredo para manter o equilíbrio entre o ambiente e a produção agrícola na quinta, onde os pássaros dão música ao agricultor, passa pela recuperação da luta biológica entre as diferentes espécies. “A natureza funciona por ela própria”, diz. A determinada altura, quando detectou que os pulgões (piolhos) atacavam as romãzeiras, deixando as folhas encarquilhadas, plantou loendros nas proximidades. Os pulgões, explica, “desenvolvem-se nos loendros, mas aparecem logo os seus predadores, que são as joaninhas. Ao fim de três ou quatro semanas, temos joaninhas por todo o lado”. E de uma cajadada só, resolveram-se os problemas.

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Por fim, em jeito de despedida, deixa a sugestão de uma futura visita com água na boca: “Já viram uma romã preta? Está aqui, fui descobri-la numa propriedade abandonada, próximo da Barragem de Odelouca”. Os frutos, mais pequenos do que habitual, “sabem a rebuçados, daqueles rebuçados antigos que a gente comprava nas feiras, com sabor intenso a fruta”.

Menos água, mais consumo

Falámos de excepções, mas estão longe de ser a regra. Porque apesar da situação de seca que pende sobre a região, nada parece mudar. No mês de Janeiro, o consumo urbano (doméstico e turístico) registou, segundo a Agência Portuguesa do Ambiente (APA), um aumento de 4,6%. As campanhas de sensibilização para a poupança, comenta Cláudia Sil, “não tiveram qualquer efeito”. A representante das organizações não-governamentais (ONG) no conselho regional da CCDR, critica a aposta na agricultura intensiva, lembrando que a seca na região tem raízes históricas.

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Nos arquivos da Torre do Tombo, refere, descobriu uma carta, de 1566, da abadessa do Convento do Mosteiro de Faro à rainha, relatando a “muita falta de água” que, então, se fazia sentir. Por isso, pedia a sua majestade ajuda financeira para abrir um poço de “água excelente por um moço vedor de águas”. Já no século XX, em 1929, o bispo de Algarve mandou publicar no jornal Folha do Domingo uma nota exortando os fiéis a rezar para que “dos céus caisse a água tão desejada” nos campos. “A falta de chuvas, que cada dia se torna mais sensível, faz-nos temer o flagelo da fome com que Deus muitas vezes pune os crimes dos homens.” E para que os “favores celestes” implorados fossem ouvidos, escreveu: “Havemos por bem ordenar que em todas as igrejas e paroquiais se façam preces públicas, com o Santíssimo Sacramento exposto, durante três dias.”

Voltando aos dias de hoje, as barragens algarvias encontram-se com menos 40 milhões de metros cúbicos de água. A palavra de ordem das entidades oficiais é “poupar hoje para que não falta amanhã”, mas os apertos ainda não se fizeram sentir. “Estamos a iludir a realidade”, enfatiza Cláudia Sil.

O pomar de sequeiro e a paisagem

O pomar tradicional algarvio, refere João Costa no livro Pomar de Sequeiro/Dieta Mediterrânica, editado pela CCDR/Algarve, “pode ser considerado como um dos elementos mais importantes da paisagem rural algarvia”, muito embora reconheça “o estado de abandono e decrepitude em que se encontra”. As amêndoas, tal como os figos, prossegue, desde sempre constituíram “os ingredientes principais da rica, variada e famosa doçaria regional algarvia”. Por seu turno, o director regional de Agricultura e Pescas do Algarve, Pedro Monteiro, entende que estas culturas, pela sua importância na preservação dos ecossistemas, “merecem um reforço de incentivos, no quadro das medidas agro-ambientais”.

Uma fatia “três delícias” – figo, amêndoa, alfarroba — num restaurante de média qualidade custa seis, sete euros (quase o preço de uma arroba de alfarrobas). A concorrência da amêndoa, produzida em regime intensivo no Alentejo ou na Califórnia (EUA), contribuiu para o desinteresse económico no cultivo da espécie, o mesmo sucedendo com a figueira. Agora também o preço da alfarroba tem vindo a cair. O agricultor Luís Cavaco contornou os circuitos comerciais. “No ano passado, a Cooperativa de Santa Catarina ofereceu-me 70 cêntimos/quilo pelo figo seco, vendi a uma pastelaria de Loulé, que se dedica à doçaria tradicional, pagou a sete euros/quilo”. A qualidade, concluiu, faz a diferença.