Cientistas querem usar resíduos alimentares para fazer pensos higiénicos biodegradáveis

Cientistas afirmam ter desenvolvido um material absorvente, produzido a partir do glúten e da zeína (proteína do milho), que pode ser uma alternativa aos plásticos na produção de pensos e fraldas.

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Os pensos higiénicos actuais têm muitas vezes como destino os aterros sanitários, onde podem levar séculos para ser decompostos em microplásticos Karolina Grabowska/Pexels
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Os pensos higiénicos e as fraldas descartáveis cuja produção continua a depender de derivados do petróleo podem deixar de ser uma fonte de poluição plástica se substituirmos os polímeros sintéticos por proteínas. É o que defende uma equipa de cientistas que afirma ter desenvolvido um material absorvente a partir do glúten e da zeína (uma proteína do milho). Os resultados da prova de conceito foram apresentados nesta terça-feira numa conferência da Sociedade Americana de Química, em Nova Orleães, nos Estados Unidos.

“A indústria de produtos de higiene vai assentar em modelos em que as matérias-primas advêm de resíduos e, uma vez consumidos os produtos, aquilo que descartamos passa a ser utilizado noutros processos naturais, como os fertilizantes. Em resumo, a sustentabilidade do futuro é aquela em que os nossos produtos são derivados de resíduos”, explica ao PÚBLICO o co-autor Antonio Capezza, investigador da divisão de polímeros do Instituto Real de Tecnologia (KTH, na sigla sueca), em Estocolmo.

A equipa de Antonio Capezza desenvolveu um material, resultante de uma combinação de proteínas, capaz de absorver fluidos e oferecer um toque seco à superfície. Trata-se de mistura de glúten (presente em cereais como o trigo), zeína (proteína que pode ser “moldada” consoante a temperatura), água e bicarbonatos. Unidos, estes “ingredientes” dão origem a estruturas proteicas porosas que, quando prensadas a quente, podem adquirir a forma de pensos ou fraldas. As fontes das matérias-primas são, segundo a equipa, restos de comida e resíduos da indústria agro-alimentar.

“Como cientistas de materiais, normalmente utilizamos uma proteína para o material X e testamos. Material Y e testamos. Ficámos muito desiludidos com os nossos resultados iniciais porque não funcionavam de todo. A nossa maior surpresa foi quando misturámos os materiais proteicos (X+Y+Z) e percebemos que aí funcionava. Portanto, a solução não estava numa única proteína ou na sua utilização individual, mas na sua combinação”, refere o cientista.

Outra descoberta que surpreendeu os investigadores foi perceber que o novo material decompunha-se quase totalmente em cerca de sete semanas, libertando moléculas comuns nos solos produtivos (carbono, azoto, fósforo e aminoácidos). Os testes foram realizados tendo pensos higiénicos como prova de conceito.

“A degradação dá origem a moléculas que são utilizadas pelas plantas para crescerem mais saudáveis e mais depressa (bioestimulantes). Isto é espantoso porque mostra a circularidade total dos materiais”, observa Capezza.

Pensos que se tornam fertilizantes

A equipa aventa a hipótese de, no futuro, estes produtos higiénicos biodegradáveis poderem ser deitados na sanita ou serem encaminhados para a produção de fertilizantes agrícolas. Actualmente, a versão plástica destes produtos tem muitas vezes como destino os aterros sanitários, onde podem levar séculos para ser decompostos em fragmentos minúsculos de plástico. Trata-se de micro ou nanoplásticos que se acumulam nos ecossistemas e nos próprios seres vivos.

O cientista enfatiza o facto de o novo material proteico ser “seguro para a natureza”, mesmo que acabe por ir parar ao solo. “Muitos trabalhos centram-se na biodegradabilidade do material como um parâmetro de sustentabilidade. No entanto, voltamos à casa de partida se o material der origem a microplásticos ou moléculas tóxicas quando se degrada. Neste caso, os materiais degradam-se em moléculas seguras e não produzem microplásticos”, garante o cientista do instituto sueco.

Os plásticos são produzidos a partir de combustíveis fósseis, cuja queima está directamente ligada à emissão de gases com efeito de estufa e, consequentemente, às alterações climáticas. Este material suscita preocupações ambientais não só pelo descarte irresponsável, que agrava a poluição de solos, rios e mares, mas também pelo possível impacto na saúde humana. Embora objectos como os sacos de plástico estejam a ser substituídos por outros materiais, produtos de higiene como os pensos ainda não contam com alternativas que ofereçam a mesma praticidade ao consumidor. E daí a aposta desta equipa de cientistas no material à base de proteínas.

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Espuma à base de proteínas constitui o núcleo absorvente dos protótipos de pensos higiénicos e fraldas biodegradáveis Athanasios Latras

O resumo da apresentação refere que “o estudo incluiu uma avaliação dos custos dos materiais em comparação com os materiais comerciais sintéticos tradicionais”, indicando que há margem para competitividade. Os produtos feitos com o novo material poderiam custar 10 a 20% mais, um custo adicional que os cientistas acreditam que não deverá ser dissuasor.

“Realizámos alguns questionários de análise de sensibilidade e obtivemos um feedback muito positivo de clientes dispostos a pagar mais, desde que ganhem em termos de sustentabilidade”, esclarece o investigador. Capezza sublinha, contudo, que há circunstâncias socioeconómicas que podem condicionar as opções de consumo. Se há um pico de inflação que faz disparar o custo de vida, por exemplo, garantir a alimentação torna-se mais importante do que ser sustentável.

Outro desafio que os cientistas antevêem é fazer as pessoas compreenderem que as proteínas podem ser seguras. O facto de o glúten ser uma das matérias-primas destes produtos de higiene pode, por exemplo, causar alguma hesitação nos consumidores alérgicos. “Isto pode assustar as pessoas celíacas, mesmo que estes materiais não sejam ingeridos, observa Capezza.