“Marginalidade, solidão”: Emanuel revisita o trauma do bullying

O projecto Comportamento Irregular, que Emanuel Amorim desenvolveu durante a Masterclass da Narrativa, traça o retrato subjectivo das cicatrizes psicológicas provocadas pelo bullying.

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Quando o núcleo familiar de Emanuel Amorim mudou de casa, do centro para a periferia de Setúbal, a vida do então adolescente de 12 anos mudou. “Passei a ser o novo miúdo do bairro”, contou ao P3, em entrevista o fotógrafo amador de 38 anos. “Logo no primeiro dia, um grupo de jovens tentou roubar-me a bicicleta. Impus-me, disse que não. E a partir de momento, essas pessoas passaram a tentar bater-me sempre que me encontravam.” Emanuel isolou-se. “Passei a estar mais dentro de casa”, recorda. Foi nessa altura que mergulhou no universo dos livros, uma paixão que o conduziu, já em idade adulta, a um percurso profissional ligado às letras e ao jornalismo. “Quando saía de casa, ou ficava mesmo junto à porta de casa, preparado para entrar caso algum deles aparecesse, ou então saía do bairro. Foi uma experiência muito marcante.”

O contacto com a fotografia é recente na vida do sadino. Há três anos, quando enfrentava uma crise depressiva, um bloqueio criativo na escrita impelia-o a fazer longas caminhadas. “Levava sempre comigo a câmara fotográfica”, conta. “Tirava umas fotografias e colocava no Instagram.” Com o passar do tempo, percebeu que aquilo que fotografava “era uma espécie de espelho interior” e que reunia, progressivamente, fotografias que poderiam formar um documentário. No espaço Narrativa, do fotojornalista Mário Cruz, Emanuel participou em duas acções de formação; foi na última, a chamada Masterclass, que desenvolveu o projecto Comportamento Irregular, que remete precisamente o seu passado enquanto vítima de bullying.

Embora as fotografias descrevam exclusivamente lugares da periferia de Setúbal, e nunca pessoas, “este não é apenas um trabalho sobre território”, elucida. “Incide sobre a forma como eu me sentia deslocado dentro de um lugar.” A metáfora é uma presença constante no corpo de trabalho de Amorim. “Desenvolvi o projecto em torno da ideia de periferia como espaço mental, e não físico. Durante um período da minha vida, sentia que a cidade era minha. A certa altura perdi-a. Com este trabalho eu tento reconquistar a cidade.”

Emanuel pensava, inicialmente, integrar no projecto alguns dos poemas ou escritos que tinha produzido durante a adolescência que denotassem o isolamento que sentia. Porém, deparou-se com algo que considerou ainda mais interessante: os boletins de avaliação dos seus antigos professores. “São muito reveladores. Eles traçam o retrato do adolescente que eu fui aos olhos dos adultos. Os textos eram muito fortes e muito representativos. Descrevem a forma como eu me sentia.” Excertos desses textos foram sobrepostos às fotografias que estarão em exposição no espaço Narrativa, em Lisboa, entre 9 de Março e 13 de Abril. “Algumas das palavras são muito duras.”

Foi nas palavras de um dos professores que encontrou o título do projecto Comportamento Irregular. Noutro boletim de avaliação lia-se “mantém uma atitude negativa, não tem hábitos de trabalho e, consequentemente, os problemas agravam-se”. “Os meus comportamentos eram um sintoma, não uma decisão”, evidencia o fotógrafo. “Essa observação é das mais significativas do tipo de violência que encontrei.”

Hoje, Emanuel vive apenas a duas ruas de distância da casa onde passou a adolescência. “Eu partilho coisas com as pessoas deste lugar, mas ao mesmo tempo sempre me senti à parte. Fui eu quem sentiu a necessidade de se afastar. Foi essa sensação que tentei captar ao fotografar a paisagem urbana de Setúbal, uma espécie de reflexo dos sentimentos que eu tive nessa altura: marginalidade, solidão.” Quando começou a ter consultas de psicologia, Emanuel percebeu que é, “mais do que imaginava”, ainda é “um fruto dessas circunstâncias” do seu passado.

Fotografia do projecto <i>Comportamento Irregular</i>, realizado no âmbito da Masterclass da Narrativa de 2023/24
Fotografia do projecto Comportamento Irregular, realizado no âmbito da Masterclass da Narrativa de 2023/24 ©Emanuel Amorim
Fotografia do projecto <i>Comportamento Irregular</i>, realizado no âmbito da Masterclass da Narrativa de 2023/24
Fotografia do projecto Comportamento Irregular, realizado no âmbito da Masterclass da Narrativa de 2023/24 ©Emanuel Amorim
Fotografia do projecto <i>Comportamento Irregular</i>, realizado no âmbito da Masterclass da Narrativa de 2023/24
Fotografia do projecto Comportamento Irregular, realizado no âmbito da Masterclass da Narrativa de 2023/24 ©Emanuel Amorim
Fotografia do projecto <i>Comportamento Irregular</i>, realizado no âmbito da Masterclass da Narrativa de 2023/24
Fotografia do projecto Comportamento Irregular, realizado no âmbito da Masterclass da Narrativa de 2023/24 ©Emanuel Amorim
Fotografia do projecto <i>Comportamento Irregular</i>, realizado no âmbito da Masterclass da Narrativa de 2023/24
Fotografia do projecto Comportamento Irregular, realizado no âmbito da Masterclass da Narrativa de 2023/24 ©Emanuel Amorim
Fotografia do projecto <i>Comportamento Irregular</i>, realizado no âmbito da Masterclass da Narrativa de 2023/24
Fotografia do projecto Comportamento Irregular, realizado no âmbito da Masterclass da Narrativa de 2023/24 ©Emanuel Amorim
Fotografia do projecto <i>Comportamento Irregular</i>, realizado no âmbito da Masterclass da Narrativa de 2023/24
Fotografia do projecto Comportamento Irregular, realizado no âmbito da Masterclass da Narrativa de 2023/24 ©Emanuel Amorim