Ciúmes de fantasmas
Ela não discorda das minhas posições, apenas se apropria delas para chegar mais alto, transforma a água que lhe dou em vinho.
Apesar de há muito ter deixado a vida religiosa, pensava o Calvo, ela continua a ser fundamentalmente uma mulher repleta de Deus, na verdade, o que parece acontecer é que a divindade não é capaz de a circunscrever na sua imensidão, vertendo-a como imensidão transbordante da imensidão. Tem mais trinta centímetros de altura do que eu e pesa mais do dobro, apesar de estes dados serem na verdade irrelevantes, servindo apenas para constatar a obviedade de termos dimensões físicas muito diferentes. São as outras, as intelectuais, que mais nos separam: somos seres desconformes e descoincidentes que se cruzaram por coincidência. Ela crê e eu, pelo contrário, descreio, mas ela, na sua crença é mais céptica do que eu na minha descrença. Cada vez que pensa, pensa mais alto, e não é possível chegar às mesmas prateleiras do universo onde ela vai ao frasco das bolachas. É desconcertante. Eu sempre me considerei um sujeito cultíssimo, bastante acima da média, mas ao discutir com ela tento apenas manter-me à tona. Todo o seu discurso é uma sobreposição de planos epistemológicos diferentes, mas análogos, que se relacionam na vertical. Quando estou a seu lado tenho uma sensação de ignorância total ou perto disso, como se estivesse a olhar o mundo pela primeira vez, como um recém-nascido. Sempre que defendo a possibilidade de o universo poder ser compreendido objectivamente, através da mensurabilidade — afinal, sou contabilista — e da causalidade e da lógica, acabo esmagado pela visão que ela tem do mundo, com as suas múltiplas posições relativas e dinâmicas, conciliando o inconciliável. Ela não discorda das minhas posições, apenas se apropria delas para chegar mais alto, transforma a água que lhe dou em vinho. Percebi pouco ou nada da leitura do livro da sua autoria, mas que foi publicado com o nome do tal professor defunto que continua a visitá-la. Por mim, esse era o tipo de aparição que mais valia não aparecer. Ora bolas, por que motivo pensei isto? Que absurdo de pessoa sou eu, que até de fantasmas tem ciúmes?
O contributo do PÚBLICO para a vida democrática e cívica do país reside na força da relação que estabelece com os seus leitores.Para continuar a ler este artigo assine o PÚBLICO.Ligue - nos através do 808 200 095 ou envie-nos um email para assinaturas.online@publico.pt.