Embuste e fake news: como Jonas Bendiksen enganou a Fotografia mundial
The Book of Veles foi intencionalmente apresentado como sendo documental, mas afinal era ficção. “O objectivo era ser desmascarado.” O fotógrafo da Magnum discorre sobre o poder da pós-verdade.
Na Macedónia do Norte, a pequena cidade de Veles foi, durante a campanha presidencial norte-americana de 2016, o epicentro mundial da criação e disseminação das fake news que inundaram as redes sociais dos EUA. Coincidentemente, Veles, ou Volos, é também o nome de um suposto deus eslavo do paganismo, em forma de urso, que é associado ao caos, à mentira e às partidas. O mito de Veles, associado a esse deus, consta num manuscrito antigo que foi, décadas após o seu surgimento, classificado como uma falsificação.
Os três exóticos ingredientes pareciam formar um bolo perfeito, com sabor a mentira e com travos de conspiração. “Era uma grande história”, conta ao P3, em entrevista, a partir de Oslo, o fotógrafo Jonas Bendiksen, autor do livro The Book of Veles, lançado em Abril de 2021 pela Gost Books. “Havia os miúdos que criavam centenas de sites de notícias falsas em Veles e, ao mesmo tempo, a mitologia em torno do deus com o mesmo nome da cidade. Tudo parecia encaixar.”
Jonas Bendiksen é fotojornalista e fotógrafo documental há 25 anos. Projectos como The Making of Satellites (2000), em que mergulha na complexidade cultural e identitária de quem reside nas ex-repúblicas soviéticas, ou The Places We Live (2006), que revela os habitantes das favelas e bairros de lata mais perigosos do mundo, trouxeram ao fotógrafo o reconhecimento que lhe permitiu integrar a Magnum Photos, em 2008. Os prémios em concursos e as publicações em jornais e revistas de relevância internacional viriam a consolidar a sua credibilidade e prestígio no meio da fotografia e do fotojornalismo.
O seu último projecto, The Book of Veles, premiado pelo World Press Photo em 2022, é, no entanto, diferente de todos os que Bendiksen já havia realizado. Em 2019, quando decidiu debruçar-se sobre a pequena capital das fake news, essa indústria já tinha ruído. “Assim que foi descoberta, foi imediatamente desmantelada”, observa. Ainda assim, o fotógrafo decidiu visitar a urbe de 55 mil habitantes duas vezes, uma em 2019 e outra em Fevereiro de 2020, “uma semana antes de o coronavírus ter fechado toda a Europa”, lembra. “Quando lá fui, já não havia nada para ver.” O conjunto de fotografias que trouxe das viagens foi usado no projecto, mas constituem apenas uma parte dele. Já lá vamos.
Antes da disponibilização ao público das ferramentas de inteligência artificial (IA) generativa como o ChatGPT (texto) ou DALL-E ou Midjourney (imagem), que só ocorreria em 2022, as imagens sintéticas de aspecto fotorrealista faziam as suas primeiras aparições online. “Isso suscitou-me imensas questões”, conta o fotojornalista. “Quando for possível produzir de forma automática imagens sintéticas fotorrealistas, o que irá acontecer? Eu tentava imaginar o futuro.”
E não se limitou a imaginá-lo. Bendisken materializou-o. The Book of Veles contém, na verdade, imagens que resultam da fusão das fotografias que realizou na Macedónia do Norte com elementos sintéticos que gerou com recurso a software gráfico para videojogos e a programas de modulação de imagem 3D. O projecto era ficcional, e não jornalístico ou documental, mas o norueguês escolheu não contar a ninguém. Preferiu que a obra “mentirosa”, assim que triunfantemente desmascarada, servisse como ponto de partida para a discussão sobre o impacto futuro desse tipo de imagens no ecossistema informativo. “‘Quão preparados estamos para isto nos mundos da fotografia e do jornalismo?’ ‘O grande público está preparado para conviver com o fenómeno?’ ‘O que podemos fazer?’ São grandes questões, não são?”
Jonas Bendiksen tinha, desde o início, a intenção de enganar, sim. “Mas era uma burla honesta”, argumenta. “A ideia sempre foi ser apanhado. Só demorou muito mais tempo do que eu previa.”
A linguagem fotográfica usada em The Book of Veles é marcadamente documental e segue em linha com o tipo de trabalho apresentado pelo fotógrafo no passado. O livro descreve os alegados encontros com os jovens trabalhadores da indústria de fake news da cidade, desvelando as suas vidas profissionais e privadas. A alusão gráfica ao mito de Veles é omnipresente, assim como a presença de ursos que percorrem, estranhamente, as ruas da cidade. E entre imagens, chavões das notícias falsas alegadamente criados pelos jovens vão marcando o ritmo: “Máquinas de voto em Chicago transformam literalmente os votos republicanos em democratas… É uma loucura!”, lê-se.
“Não me encontrei com ninguém da indústria das notícias falsas, em Veles”, afirma o norueguês de 47 anos. “Quis evitar encontrar alguém porque eu queria que o meu retrato destas pessoas fosse inteiramente baseado nos meus próprios preconceitos. Não quis ser influenciado por saber quem eram na realidade.” No background de cada imagem existe um fundo de natureza fotográfica, captada realmente em lugares de Veles. “Mas todas sofreram uma intervenção, com elementos adicionados ou subtraídos. As pessoas e os animais foram colocados a posteriori.”
Bendiksen crê que o engodo que arquitectou deveria ser, aos olhos de todos, bastante evidente. “O livro está cheio de pistas e de incongruências que foram lá colocadas deliberadamente para plantar a dúvida.” O texto nele contido está assinado por GPT 2, numa alusão à utilização do ChatGPT na sua concepção. Na última página do livro, o fotógrafo agradece à organização OpenAI e à empresa NVidia, que se dedicam ao desenvolvimento de inteligência artificial, e aos programas de modulação 3D Daz e Blender. “Que brinquedos divertidos”, lê-se.
“O facto de ninguém me ter apanhado foi um choque para mim”, recorda. “O plano era que as pessoas percebessem o que se passava no prazo de duas ou três semanas, no máximo um mês." Eis como imaginava que tudo se iria desenrolar: "Eu lançaria o livro sem revelar a verdade, as pessoas ficariam desconfiadas e começariam a escrever nas redes sociais sobre as suas suspeitas; então, eu começaria a envolver-me e haveria algum ruído em torno do livro. Quando fosse finalmente apresentado, toda a discussão seria em torno da informação e imagem sintéticas e de fake news.”
Feliz ou infelizmente, as expectativas do fotógrafo saíram logradas. “Não houve uma única alma com uma pergunta crítica, não houve qualquer discussão. No Facebook e no Instagram recebia apenas likes, corações e comentários que diziam coisas como ‘que bela reportagem de investigação’. Isso deixou-me chocado. Porque era um trabalho mal feito, parecia uma coisa feita por um amador.”
A credibilidade de Jonas Bendiksen tê-lo-á tornado insuspeito? Mentiria o fotógrafo da Magnum Photos, o autor de quatro monografias, o vencedor de múltiplos prémios de fotojornalismo? “Eu sou considerado uma fonte credível, sim”, anui. “Mas, por outro lado, tentei enganar pessoas que, em teoria, são as mais sofisticadas do planeta, no que toca a fotografia e imagem.” Editores de fotografia, colegas fotógrafos, curadores, ninguém foi capaz de detectar o logro. Nem mesmo os colegas da Magnum Photos.
"Jonas Bendiksen é uma fraude"
“Pensava como raio vou sair deste buraco?”, recorda, rindo. “Porque é que ninguém me apanha? E decidi, finalmente. Se Maomé não vai à montanha, vou levar a montanha a Maomé.” Contratou uma empresa que vende perfis falsos nas redes sociais e comprou um. “Pedi-lhes que criassem uma pessoa com nome e aparência europeia do Leste. A operação custou uns 30 dólares ou algo parecido. Assim nasceu a Chloe Miskin. O perfil que veio com uma série de fotografias e informação detalhada. Era uma jovem fotógrafa de Veles que vivia em Manchester. Ainda é possível encontrá-la online.”
No final da Primavera, dois meses após o lançamento do livro, o perfil de Chloe começou a fazer pedidos de amizade a todas as pessoas que Bendiksen conhecia da indústria da fotografia. “Editores, jornalistas, colegas fotógrafos. No total, adicionou cerca de 800 pessoas.” Surgiu o convite para apresentar o projecto no Festival Internacional de Fotojornalismo Visa Pour L’Image, em Perpignan, França, em Setembro de 2021. Embora sentisse um conflito interior em apresentar no festival um projecto “falso”, achou, ao mesmo tempo, que seria importante fazê-lo. “Se ninguém me desmascarasse, isso iria pôr a nu a vulnerabilidade da própria indústria.”
As suas imagens parcialmente sintéticas foram mostradas num ecrã com 24 metros de largura em frente à Catedral de Sain-Jean-Baptiste-de-Perpignan. “Pensei: ‘Se ninguém reagir ao ver as imagens num ecrã deste tamanho, vou ter de acabar com isto.’” Os aplausos no final da apresentação deixaram claro que o projecto era acolhido como verdadeiro. “Foi então que decidi que a Chloe iria dar início a uma campanha contra mim. Ela seria uma espécie de whistleblower que contaria a toda a gente que o Jonas Bendiksen é uma fraude, que produz fake news.”
Chloe tentou “heroicamente”, adjectiva, convencer toda a gente. Apresentou provas e apontou para as falhas e incongruências do projecto, recorda o fotógrafo. “Mas não foi bem-sucedida quando tentou denegrir-me no Facebook. Decidi, por isso, criar um perfil dela no Twitter, onde ela não tinha de ser tão bem-educada." Até que, finalmente, ela conseguiu convencer alguém. "Mesmo assim, até conseguir passaram mais de três semanas. As pessoas não queriam acreditar que o projecto era falso. Havia quem me defendesse, quem contra-argumentasse, foi difícil.”
Era estranho, evidencia. A recusa na aceitação poderá dar algumas pistas no que toca a compreensão do fenómeno de pós-verdade. A credibilidade do fotógrafo sobrepôs-se, durante algum tempo, à aceitação da verdade, mesmo sendo suportada por evidências. “Quando a bolha rebentou e finalmente a verdade foi reposta, publiquei um artigo de perguntas e respostas no site da Magnum sobre o projecto. E depois, sim, o projecto chegou às revistas e aos jornais e ganhou uma segunda vida.” Até então, Jonas não havia não publicado o projecto nos jornais, não querendo que uma mentira se difundisse à escala mundial.
Para Bendiksen, a experiência foi reveladora. Não sentiu, após todo o tumulto, que existisse um impacto negativo sobre a sua credibilidade. “As pessoas entenderam que o projecto seria insignificante se não fosse pela verdadeira mensagem que veicula.” Mas garante que não irá repetir a proeza. "Nunca foi minha intenção permanecer neste limbo de credibilidade ou mesmo explorar mais a fundo a inteligência artificial. O meu objectivo era muito específico." E foi cumprido.
Entretanto, as ferramentas de inteligência artificial generativas “democratizaram-se”, prometendo lançar uma nuvem de caos sobre as democracias. “Hoje, já é muito complicado navegar o ecossistema dos média. Temos de aprender a viver com a presença da imagem sintética fotorrealista, não vamos conseguir ver-nos livres dela. Temos de criar defesas contra este fenómeno e promover a literacia mediática, reaprender a lidar com a informação.” Medidas e práticas de promoção da transparência dos conteúdos online são urgentes, na opinião do norueguês. “Não podemos chegar ao ponto de não confiarmos em nada, isso só beneficiará os autocratas, aqueles que preferem manter as pessoas imersas na confusão.”
A experiência com The Book of Veles revelou ao fotógrafo da Magnum que existe, em geral, um défice de atenção face às imagens que se consomem que deve ser combatido. “O livro foi apresentado como um produto jornalístico sério, com imagens ao estilo jornalístico, e foi aceite como tal, sem questionamento. Havia ursos de aparência estúpida a caminhar no centro da cidade e ninguém achou estranho. A inteligência artificial não criou esses problemas, mas irá aumentá-los. Nós criámos o problema." E teremos, o quanto antes, de aprender a mitigá-lo.