Simulação de cheia no rio Guadiana causa desconforto em Huelva

A EDIA descarregou entre 27 e 29 de Fevereiro e a partir da barragem de Pedrógão 45 milhões de metros cúbicos de água, a mesma quantidade que consomem 150 mil habitantes de Huelva.

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Pelo segundo ano consecutivo, a EDIA fez uma simulação de cheia e libertou 45 hectómetros cúbicos de água Nuno Ferreira Santos/ARQUIVO
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Depois de o Alqueva ter simulado um "caudal de cheia", o diário Huelva Información inseriu na sua edição de 4 de Março um texto a que deu o título: “Em três dias, Alqueva descarrega a água que a população de Huelva consome num ano devido a uma simulação de cheia do Guadiana.” O jornal espanhol realçava, com sentido crítico, que o volume libertado em três dias, 45 hectómetros cúbicos, equivale à água consumida anualmente pela população da província de Huelva”.

As descargas para o rio Guadiana contrastam com a escassez de recursos hídricos que está a condicionar de forma drástica o sector agrícola desta província da Andaluzia, obrigado a suportar um corte de 50% no volume de água que pode gastar nos seus sistemas de rega. As restrições afectam igualmente o sector turístico e industrial, mas em menor escala (10%).

A decisão da Empresa de Desenvolvimento e Infra-Estruturas do Alqueva (EDIA) de descarregar entre os dias 27 e 29 de Fevereiro um total de 45 hectómetros cúbicos (hm3) de água a partir da barragem de Pedrógão serviu para simular um “caudal de cheia” necessário à manutenção do equilíbrio ecológico na foz do Guadiana, justificou ao PÚBLICO José Pedro Salema, presidente da EDIA.

Adiantou ainda que a operação terá sempre de ocorrer “em anos não secos”, como foi o período que decorre entre o início de Novembro de 2023 e o final de Fevereiro; e na ausência de uma “cheia natural”, ou seja: se a jusante da barragem de Pedrógão as afluências naturais não atingirem valores iguais ou superiores a 300m3/s, que são registados na secção do Pulo do Lobo.

As simulações de “caudal de cheia” são efectuadas para garantir o equilíbrio ecológico na foz do Guadiana. A descarga de um grande volume de água, além de beneficiar os ecossistemas ribeirinhos, recoloca na foz do Guadiana sedimentos e nutrientes necessários ao pesqueiro algarvio. “É uma pena perder 45hm3 de água, mas é o preço a pagar para termos paz com a natureza", acrescenta o presidente da EDIA, consciente das críticas e dos protestos que a libertação deste débito pode gerar, sobretudo no Algarve, para onde se espera um ano crítico no acesso à água para consumo humano, a agricultura e o turismo.

Contudo, as notícias do mal-estar vieram de Huelva, sobretudo das organizações agrícolas que no passado mês de Outubro viram aprovado no parlamento da Junta de Andaluzia uma moção que solicita ao Governo central espanhol uma intervenção junto do seu homólogo português para que o Alqueva fornecesse à região de Huelva entre 75 e 100 hm3 de água para fazer face à seca que estava a colocar em perigo a produção de frutos vermelhos.

O presidente da Caja Rural del Sur, José Luis García-Palacios, no programa Acento Andaluz, de um canal de televisão regional, juntou-se aos pedidos feitos ao parlamento da Andaluzia, ao considerar que “a única solução a curto prazo para aliviar a seca na província de Huelva” passaria por injectar no sistema de recursos da província espanhola “água da barragem portuguesa de Alqueva”.

García-Palácios reivindica o aproveitamento “das águas que vão para o mar, através do Guadiana e que desaguam em Ayamonte”, para dotar Huelva da água que necessita para as suas actividades económicas e o consumo humano.

Entretanto representantes das organizações agrícolas de Huelva mantiveram uma reunião com o secretário de Estado do Ambiente, Hugo Morán, e este comprometeu-se a resolver a situação através da bombagem de 75 hm3 a partir do Bocachança, uma tomada de água instalada pelos espanhóis na confluência do rio Chança com o rio Guadiana, a poucos metros do antigo porto mineiro do Pomarão.

Esta solução também foi anunciada através de comunicado conjunto da Freshuelva, Associação de Citrinos da Província de Huelva, Cooperativas Agro-Alimentarias, Associação Agrária de Jovens Agricultores, União de Pequenos Agricultores e Produtores Pecuários e a associação de Comunidades de Irrigação de Huelva (Corehu). Pretendem que sejam assegurados os 75 hm3 do Guadiana “antes de 15 de Abril” próximo.

No entanto, Teresa Ribera, ministra da Transição Ecológica e do Desafio Demográfico de Espanha, diz que “duvida do aproveitamento da água do Alqueva para Huelva”, garantindo que o pedido nesse sentido “foi formalmente rejeitado por Portugal”.

Distribuição irregular

O PÚBLICO solicitou ao ministro do Ambiente e da Acção Climática, Duarte Cordeiro, se confirmava a existência de contactos com as autoridades espanholas sobre o fornecimento de 75 hm3 de água a partir de Alqueva, mas o seu porta-voz contornou a questão frisando que a “utilização da água partilhada está regulada pela Convenção de Albufeira”.

Assim sendo, “a captação de água por cada uma das partes está sujeita a um pedido formal no âmbito da Comissão para a Aplicação e o Desenvolvimento da Convenção de Albufeira” que o porta-voz não confirmou, mas lembrou que a Convenção de Albufeira “é o tratado em vigor entre Portugal e Espanha em matéria de recursos hídricos, sendo nesse quadro que a partilha de recursos entre os dois países se discute”.

Também a Federação das Associações de Agricultores do Baixo Alentejo (Faaba), através de comunicado, criticou a simulação de cheia promovida pela EDIA no rio Guadiana e numa altura em que os agricultores “se debatem com cortes de água às suas explorações agrícolas, sempre que ultrapassam as dotações pré-estabelecidas e se impõem barreiras à reestruturação de culturas e à distribuição da água aos regantes precários”.

A Faaba assume que a decisão da EDIA redundou num “enorme desperdício de água e de má gestão dos recursos hídricos disponíveis” no Alqueva, referindo que os 45 milhões de metros cúbicos (m3) libertados para simulação de cheia são um acréscimo ao caudal ecológico que, em anos muito secos, pode atingir os 600 milhões de m3. Neste sentido, sugere que seja utilizado parte do caudal ecológico nas próximas descargas que venham a ter lugar para a limpeza do rio Guadiana.

O conflito sobre a gestão dos recursos hídricos de Alqueva não se circunscreve apenas aos 45 hm3 debitados para limpeza do rio, ou o acesso a 75 hm3 que as organizações agrícolas e o parlamento da Junta de Andaluzia reclamam de Portugal. As atenções do outro lado da fronteira estão a concentrar-se cada vez mais num facto paradoxal: porque é que o rio Guadiana apresenta maior volume de armazenamento no Alqueva do que nas 35 barragens públicas instaladas na bacia espanhola?

É o próprio Ministério da Transição Ecológica e Desafio Demográfico (Miteco) que explica o porquê: as precipitações no ano hidrológico 2023/2024 “têm-se distribuído de forma irregular, concentrando-se na parte mais ocidental e norte da bacia”, perto da fronteira com Portugal, “onde os reservatórios são mais pequenos, ou seja, onde não foram construídas barragens para recolher o escoamento vindo de montante. Como não é possível reter as águas, estas acabam por circular a jusante, em direcção a Portugal.

Um rio de humores

Acresce ainda que o Baixo Guadiana, em território português, é afectado pelo oceano Atlântico, e como tal sujeito a menos oscilações térmicas e chuvas abundantes, enquanto a mesma bacia do rio ibérico em Espanha é dominada pelo clima mediterrâneo mais seco e com níveis de precipitação mais inconstantes. Por esta razão, a “percentagem de enchimento da bacia do Guadiana em território espanhol é mais reduzida”, esclarece o Miteco.

Nestas circunstâncias a barragem de Alqueva é a grande beneficiada pelas escorrências que resultam das tempestades que ocorrem na bacia do rio Guadiana, como se tem observado desde o início do ano.

O presidente da EDIA, José Pedro Salema, confirma a explicação apresentada pelo Miteco: as tempestades que têm afectado vastas regiões da Península Ibérica assumiram “maior intensidade na região do Baixo Guadiana, mais precisamente nas proximidades da fronteira com o território português”. Os caudais têm sido “mais significativos no médio e baixo Guadiana, num território onde Espanha não construiu barragens porque o relevo não propicia a sua instalação”, acentua o presidente da EDIA.

A natureza da bacia hidrográfica fez do Guadiana um rio de humores, extremamente seco em períodos cada vez mais curtos entre si ou que, de repente, apresenta volumes de escoamento que podem ultrapassar os 1000 metros cúbicos por segundo.

O Alqueva beneficiou ainda das descargas efectuadas a partir das barragens portuguesas instaladas na bacia do Guadiana (Lucefecit, Caia, Abrilongo), por terem atingido o seu enchimento pleno, e dos sistemas produtores de energia hídrica instalados em território espanhol. O volume de água armazenado no Alqueva também é resultado do sistema de contra-embalse que permite devolver à albufeira durante o período nocturno a água que é descarregada para a produção de energia hídrica, durante o dia.

A região de Huelva que sofre de uma crescente falta de água contempla, mesmo assim, no seu plano hidrológico espanhol do terceiro ciclo de planificação 2022–2027, consumos crescentes. Ao nível da agricultura, está programada a expansão da superfície de irrigação dos actuais 50.000 hectares para 90.000 hectares. E no cenário para 2027 o Plano Hidrológico espanhol prevê um consumo de água, pela agricultura, que pode chegar aos 467 hm3 e aos 510 hm3 em 2039.

Neste momento, Huelva tem reservas de água para pouco mais de um ano, constrangimento que leva as autoridades e os agricultores de Huelva a concluir que “a solução hídrica de Huelva passa por Portugal”.