Cientistas antevêem “tempos terríveis” ao estudar dados de incêndios na Amazónia

Dados de satélite mostram danos sem precedentes na Amazónia — causados não só pelos grandes incêndios, mas também pela seca, pelos ventos fortes e pela desflorestação.

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Vista aérea mostra área desflorestada no Uruara, Estado do Pará Ueslei Marcelino/REUTERS
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A Amazónia está a enfrentar um recorde de incêndios desde o início do ano, alimentando o receio de uma crise climática ainda mais grave, uma vez que os incêndios matam a vegetação que é fundamental para absorver o dióxido de carbono (CO2) que aquece o planeta.

Fustigada pela seca hidrológica, pelos ventos fortes e pela exploração madeireira, as populações locais estão a testemunhar incêndios sem precedentes em 2024, revelam as imagens de satélite. E as partes críticas da Amazónia ainda têm pela frente toda uma estação seca.

“O conhecimento tradicional e científico aponta para tempos terríveis”, disse Sinea do Vale, do Conselho Indígena de Roraima, o estado brasileiro mais afectado pelos incêndios sem precedentes de Fevereiro. “Se as emissões não diminuírem drasticamente, continuaremos a sofrer, acrescentou.

Os fogos têm estado actualmente concentrados no norte da Amazónia, segundo dados de satélite, com o Brasil, a Guiana, o Suriname e a Venezuela a registarem um número recorde de incêndios em Fevereiro, de acordo com dados recolhidos este século pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE).

Em Janeiro, mais de 941 hectares da Amazónia brasileira foram queimados, mais do triplo dos danos registados nesta altura do ano passado, segundo o MapBiomas, uma rede brasileira de cientistas, organizações sem fins lucrativos, universidades e empresas de tecnologia.

Em Fevereiro deste ano, o INPE registou 3158 focos de incêndio na Amazónia brasileira, superando o recorde anterior de 2007, de 1761. As emissões de carbono da Amazónia atingiram um recorde para esse mês, de acordo com 22 anos de dados do serviço europeu Copérnico para a monitorização da atmosfera.

“O que estamos a ver agora é o resultado da seca de 2023. A paisagem se tornou extremamente inflamável, de modo que qualquer faísca se pode tornar um incêndio”, disse Ane Alencar, investigadora do Instituto do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IPAM) da Amazónia.

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O rio Parauá, no estado do Amazonas, em situação de seca em Outubro de 2023 Reuters/Bruno Kelly

Vegetação transformada em combustível

Os incêndios de Janeiro e Fevereiro representam normalmente uma pequena parte dos incêndios anuais na Amazónia. Os cientistas temem, no entanto, que o recorde de 2024 possa ser um sinal de uma crise mais generalizada, uma vez que décadas de intervenção humana e a actual seca severa — impulsionada pelo padrão climático El Niño — transformam vegetação em combustível.

Os incêndios abrem caminho para o crescimento de gramíneas altamente inflamáveis, o que, por sua vez, “gera incêndios ainda mais catastróficos nos próximos anos”, disse Leonardo Maracahipes-Santos, do IPAM.

“Especialmente se combinado com uma seca severa”, acrescentou o responsável a partir de uma torre de 36 metros montada pelo IPAM em Querência, no sul da Amazónia, para investigar a mudança na floresta.

Vista de cima, a Amazónia estende-se em direcção ao horizonte, cortada por campos de soja. Sob um dossel vegetal, Maracahipes-Santos aponta para uma cicatriz de incêndio numa árvore próxima.

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“As chamas abraçam a árvore e se unem no lado oposto, formando um triângulo. Mesmo que a árvore não morra imediatamente, essa abertura a torna mais vulnerável”, diz ele.

Incêndios usados como arma em disputas

Com mais árvores mortas, o solo fica cada vez mais seco e inflamável, disse Liana Anderson, do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais do Brasil.

Além disso, os incêndios são “cada vez mais usados como uma arma contra as populações tradicionais” em áreas de disputa onde agricultores, madeireiros e caçadores lutam pela terra, disse a responsável.

Os piores incêndios ocorrem normalmente entre Julho e Novembro, quando as orlas sul e leste da floresta estão mais secas, enquanto a chuva encharca o norte da Amazónia.

Mesmo durante as estações anormalmente secas, os incêndios nas florestas tropicais não são provocados naturalmente e têm de ser accionados deliberadamente. Os grileiros e fazendeiros queimam as florestas durante anos para que as áreas possam ser reaproveitadas, principalmente para a criação de gado. [Os grileiros são indivíduos que se apropriam ilegalmente de terrenos.]

De acordo com Manoela Machado, cientista do Centro de Investigação Climática Woodwell, sediado nos Estados Unidos, a Amazónia brasileira tem sofrido níveis excepcionalmente altos de desmatamento desde 2019.

Embora as taxas tenham diminuído, o desmatamento continua alto, disse a investigadora, especialmente nas franjas sul e leste da Amazónia. “Se houver desmatamento, haverá fogo”, acrescentou.

A incógnita da chuva

Uma das principais incógnitas é a quantidade de chuva que atingirá o Sul e o Leste da Amazónia nos próximos meses — e se ela será suficiente para recarregar o solo e os rios da floresta.

Esta semana, a Agência Nacional de Águas (ANA) afirmou que os principais rios da Amazónia estavam abaixo dos níveis médios para o mês e previu que a precipitação ficaria abaixo da média para o Leste da Amazónia e partes da sua margem sul de Março a Maio. Não está a chover o suficiente, disse Alencar, do IPAM.

Os cientistas dizem que as mudanças climáticas aumentam a probabilidade de eventos drásticos, de secas a inundações. Ao mesmo tempo, grandes extensões de floresta estão a desaparecer devido à desflorestação e aos incêndios, tornando-as menos resistentes. Alguns cientistas receiam que esta combinação possa empurrar a floresta para um irreversível ponto crítico.

Em vez de absorver o carbono que aquece o planeta, a floresta extinguir-se-ia, tornando-se um emissor líquido de carbono e acelerando as alterações climáticas — uma mudança já detectada em algumas áreas.

As taxas de desflorestação diminuíram na floresta desde 2023, quando o Presidente Luis Inácio Lula da Silva chegou ao poder prometendo restaurar as protecções ambientais. Mas os perigos continuam elevados.

O clima está cada vez mais seco e quente, fornecendo mais combustível seco, e há uma maior motivação para queimar. Este ciclo não terminará se não se puser fim à desflorestação, afirmou Manoela Machado, do Woodwell Center.

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