No Algarve, a luta continua

A questão do Algarve é o abandono e a negligência política, produto do desinteresse e despreocupação pela qualidade e condições de vida dos nativos das localidades onde “apenas se passam férias”.

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Baixa de Albufeira no primeiro dia após as legislativas de 2024, marcadas pela conquista do Chega no Algarve. DUARTE DRAGO
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Este Verão, quando passava as quentes tardes algarvias na caixa de um supermercado para pagar as propinas ainda por vir, aproximou-se uma senhora, lisboeta pelo sotaque, de férias pelo bronzeado. “Vocês aqui tratam-nos muito mal, pagamos-vos o ordenado e ainda nos tratam mal”, disse, sem qualquer saudação ao pousar as compras. Pisquei duas vezes, não respondi – não sabia como – e ela continuou. “Se não fossemos nós a vir cá no Verão vocês não trabalhavam! E ainda nos tratam mal…”.

Aquelas palavras perfuraram-me o estômago como facas arremessadas por vários punhos: eram palavras colectivas, manifestações impulsivas de um pensamento partilhado por compatriotas que não me vêm como igual. Os mesmos (e outros), que no Verão entopem os autocarros que nos levam em pé ao trabalho, que sobrelotam os hospitais onde os nossos doentes esperam excessivamente, que engrossam as filas dos supermercados inadequados para o volume de clientes à hora de voltar das praias – para outros hora de voltar do trabalho – e que atiram o esgotamento das infra-estruturas e a falta de preparação local à cara dos jovens trabalhadores em part-time que os atendem.

Produtores de uma grande fatia da riqueza nacional, somos perpetuamente esquecidos, deixados para o fim, quando só restam as migalhas do Orçamento do Estado, aquilo que não foi para os outros. Nós, os que fazem aqui vida, sabemos que os de cima nos soltaram a mão há muito tempo. Além dos autocarros, dos hospitais e dos supermercados, existem outros problemas que se alastram pela corrente sanguínea do Algarve e sufocam a população, que vê os homens de fato e gravata na TV a esfregar-lhes na cara o antídoto para a sua doença sem o administrar.

A seca no Algarve atingiu este ano valores críticos, mas esta é antiga e progressiva, urgente desde que sou gente e os meus pais antes de mim. O cume de uma montanha de questões ambientais que o poder político vê como um icebergue longínquo, enquanto a população sofre literalmente na pele as suas consequências.

Este não é apenas um problema da direita, que nega a iminência de uma catástrofe e a mudança das suas práticas capitalistas destrutivas em prole da segurança de uma região. Lembro que foi o PS o maior defensor da exploração de lítio, por exemplo. A questão do Algarve, e de outras regiões do país, que depositaram na esquerda a sua confiança ao longo dos anos por nela reverem as suas reivindicações, continuamente exploradas por políticas que enchem apenas os bolsos de outros, é o abandono e a negligência política, produto do desinteresse e despreocupação pela qualidade e condições de vida dos nativos das localidades onde “apenas se passam férias”.

Tal como para a senhora do supermercado era impensável que a vida no Algarve continuasse após o fim da temporada balnear, desligando-se as luzes dos estabelecimentos e retirando-se os atores que faziam de empregados no palco, é difícil para o centro administrativo do país recordar que nos governa todo o ano e não apenas quando interessa, deixando para trás uma população maioritariamente envelhecida, com empregos terciários não especializados, dos quais obtêm rendimentos abaixo da média nacional, muitas vezes com escolaridade baixa e interrompida, raramente com cursos superiores, e sobre a qual recaem rendas gentrificadas exorbitantes e o esgotamento dos recursos dos quais está dependente.

Quando este eleitorado desinformado, tendencial a cair em demagogias e populismos ocos, se sente esquecido por quem sempre prometeu defender os seus interesses, nasce a presa ideal para os predadores políticos, que procuram explorar a sua miséria por lucro. O que sobra é uma parte minoritária desta população que, dependente da justiça social e económica esquerdista para sobreviver, é engolida pela maré descontente e desesperada.

No sermão que os professores algarvios pregaram em 1993, Padre António Vieira alertava para os defeitos humanos espelhados pelos peixes: nos Pegadores, que viviam do que os maiores lhes davam e com eles morriam, via presente o parasitismo social, e nos Polvos reconhecia a traição, porque atacavam a sua presa enganando-a. Trinta anos depois, também como protesto, o eleitorado algarvio elege Polvos e Pegadores para a Assembleia da República, e acabará devorado vivo.

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