Está a crescer no Alentejo uma nova geração de sobreiros com bilhete de identidade

É a primeira experiência do género realizada a nível mundial para obter bons sobreiros produtores de cortiça, dotando-os ainda de capacidade para resistir às alterações climáticas.

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O projecto indica que todos os progenitores utilizados são sobreiros produtores de cortiça de boa qualidade Carlos Dias
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Quatro mães e dez pais estão a dar corpo a uma nova geração de sobreiros (Quercus suber) na Herdade da Abóbada, em Vila Nova de São Bento, no concelho de Serpa. São 280 exemplares, únicos no mundo, “moldados” para resistir às adversidades climáticas e serem bons produtores de cortiça em quantidade e qualidade.

É o resultado prometedor de uma década de experiências inovadoras só possível de alcançar com a sequenciação do genoma do sobreiro e da selecção das árvores-mãe. O sobreiro é uma espécie com comportamento reprodutivo algo imprevisível, principalmente ao nível da floração feminina. Por esta razão, as mães que deram origem aos novos sobreiros foram seleccionadas de uma população que é acompanhada desde 1992, e da qual existe informação sobre a sua capacidade de floração e produção de fruto.

O ADN das mães foi extraído das folhas de sobreiros na Herdade Quinta da Serra em Azeitão e o dos pais de três povoamentos de montado distintos e geograficamente distantes das progenitoras: do sobreiro HL8, localizado na Herdade dos Leitões em Montargil e de onde foi recolhido o genoma descodificado em 2018, de uma herdade da Companhia das Lezírias e a partir de sobreiro centenário que tem sido muito estudado ao longo de décadas e se encontra no Instituto Superior de Agronomia, em Lisboa. A dispersão dos progenitores masculinos procurou “minimizar a possibilidade de existirem relações de parentesco entre eles”, explicou ao PÚBLICO Ana Usié, investigadora Centro de Experimentação do Baixo Alentejo (Cebal), entidade que participa no projecto Somos Podehesa Montado, para conceber uma nova geração de sobreiros.

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Sobreiros pioneiros

A primeira dificuldade que surgiu no desenvolvimento da investigação residiu na consolidação dos progenitores que iriam dar origem aos novos sobreiros F-1, assim identificados por ser a primeira experiência do género realizada a nível mundial.

O trabalho de campo foi iniciado em Abril de 2014, através do isolamento com sacos de plástico de vários ramos nas árvores-mãe, e a recolha de pólen a partir dos progenitores masculinos para ser tratado e testado em laboratório, e posteriormente utilizado na polinização controlada das progenitoras.

O isolamento dos ramos só foi iniciado quando o processo de floração estava visível, “evitando assim que fossem polinizadas por pólen de origem desconhecida”, conta Ana Usié. Os sacos de plástico que envolveram os ramos das árvores-mãe foram concebidos de modo a permitirem a passagem do ar, mas, ao mesmo tempo, impedirem a entrada de pólen ou de outros organismos. Possuíam ainda uma pequena janela transparente, que permitia a observação do processo de floração.

Cada árvore-mãe foi polinizada com pólen de cada um dos dez progenitores masculinos. Este processo decorreu em Maio de 2014, com a abertura dos sacos para a introdução do pólen recorrendo a um pincel, “operação delicada porque as flores femininas do sobreiro são muito frágeis”, realçou a investigadora do Cebal. Depois de cada exemplar feminino ser polinizado, os sacos foram novamente fechados, para serem retirados quando as bolotas já estavam visíveis. Decorria o mês de Junho de 2014. Em Outubro seguinte, foram novamente colocados nos ramos, para facilitar o processo de colheita de que resultaram cerca de 300 bolotas que seriam semeadas nos Viveiros de Santo Isidro, em Pegões.

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O balanço final desta experiência inédita revelou que, das quatro árvores-mãe envolvidas na investigação, “só duas é que produziram bolota e, destas, uma teve um grande sucesso e agora 60% dos novos sobreiros plantados são filhos da mesma mãe”, destaca Ana Usié, frisando que “eram esperadas 40 famílias resultantes dos 49 cruzamentos efectuados, mas só 19 é que prevaleceram”.

Semeadas as 300 bolotas em vasos individuais, os primeiros sobreiros apareceram na Primavera 2015, e cada um deles foi identificado com uma letra e um número. Em Dezembro de 2015, foram mudados para vasos maiores, de forma a permitir que o desenvolvimento não fosse afectado pelo tamanho reduzido do vaso de germinação. O seu desenvolvimento prosseguiu em viveiro durante 2026 e 2017.

Mudança de terreno

Garantida a sobrevivência de 293 sobreiros, seguiu-se a sua instalação, no terreno que se considerou adequado, na Herdade da Abóbada, em Vila Nova de S. Bento, concelho de Serpa, no final de Março de 2018. Para os investigadores do projecto Genosuber que prosseguem com a sequenciação do genoma do sobreiro, os dois anos de presença dos exemplares em viveiro foram igualmente importantes para continuar o processo de recolha de dados fenotípicos.

O novo procedimento exigia a preparação do terreno, que, à partida, oferecia as condições necessárias para a sobrevivência e desenvolvimento adequado dos sobreiros nos primeiros tempos depois da sua plantação no terreno, “um processo que causa sempre algum stress aos sobreiros”, observou a investigadora do CEBAL.

Na área de plantação foram abertos buracos com 1,5 metros de profundidade, para facilitar o desenvolvimento das raízes, e elaborado o mapa da plantação. “Para continuarmos a acompanhar o desenvolvimento e a estudar estes sobreiros, que são muito importantes”, salienta Ana Usié.

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No passado dia 5 de Março, o PÚBLICO deslocou-se à Herdade da Abóbada para acompanhar a primeira poda de formação dos 280 sobreiros. Cerca de uma dúzia de árvores definhou e morreu, “mas a taxa de sucesso neste momento é de cerca de 90% de árvores sobreviventes”, refere a investigadora, que descreve pormenores registados no desenvolvimento dos sobreiros.

No ano de 2018/2019, em finais de Julho e Agosto, as árvores foram regadas. Receberam cada uma cerca de 50 litros de água. Desde então recebem apenas a água que cai do céu e desenvolvem-se com as condições climáticas que ocorram, respeitando desta forma os ciclos naturais com todos os seus constrangimentos. As árvores revelam um crescimento saudável “e até já [se pode] medir a altura e o diâmetro do fuste (caule da árvore)”, apesar de este ecossistema enfrentar várias ameaças devido às alterações climáticas.

As observações do comportamento do novo montado prosseguem. “Temos diferentes famílias representadas e dentro da mesma família há árvores diferentes”, assinala a investigadora, que apresenta ao PÚBLICO um pedaço do ramo do tamanho de um palmo, a partir do qual se irá estudar a qualidade da cortiça, a sua porosidade e composição química. “A sua composição genética é herdada pelos filhos e desta forma está facilitada a selecção dos melhores exemplares de sobreiro. Conhecer a mãe e o pai de uma determinada árvore ajuda-nos a perceber o processo de herança genética e assim salvaguardar melhor este património florestal”, prossegue Ana Usié.

Aproveitamento da cortiça

É caso para dizer que os sapadores florestais do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas percebem da poda. Com uma rapidez incrível vão cortando com uma motosserra ou à tesoura os ramos que podem afectar a formação que se pretende das árvores em início de crescimento. Já acomodam ninhos da avifauna que abunda numa herdade que é propriedade do Estado, realçando a importância do montado na preservação de um ecossistema mediterrânico, único no mundo.

A poda de formação procura moldar a estrutura da árvore, numa tentativa para alongar o fuste, de modo a ser o mais comprido possível, entre dois e três metros, para que no futuro, que se calcula em 40 anos, as árvores possam garantir boas pranchas de cortiça.

O ramo que será predominante é seleccionado e mantido de forma a evitar que as bifurcações se consolidem. O objectivo final passa por obter um crescimento mais rectilíneo possível, pois “quanto maior o fuste, maior e melhor é o aproveitamento da cortiça”, conclui a investigadora.

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O novo montado instalado na Herdade da Abóbada é caracterizado no âmbito do projecto Somos Podehesa Montado como “a única população de sobreiros dos quais se conhecem os progenitores de cada árvore, pormenor de extrema importância para estudar a genética de várias características importantes em sobreiro, como, por exemplo, os processos envolvidos na formação e qualidade da cortiça”.

Ao mesmo tempo, o desenvolvimento vai permitir construir o primeiro mapa genético do Quercus suber, que será muito útil na sequenciação do genoma do sobreiro que ainda decorre no âmbito do projecto Genosuber.

A identificação de marcadores genéticos será também facilitada com a utilização destes sobreiros. “As futuras gerações de investigadores irão beneficiar de um recurso único, com um potencial enorme para manter Portugal na liderança da investigação científica feita em sobreiro. Todos os progenitores utilizados são sobreiros produtores de cortiça de boa qualidade”, pode ler-se no preâmbulo do projecto Somos Podehesa Montado.