Infelizes sem saber

O caminho é longo, com os seus perigos e predadores, sempre com a ameaça de um regresso ao tempo em que éramos infelizes e não sabíamos — e muitos continuam a não saber.

Ouça este artigo
00:00
02:09

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

A discussão durante a tertúlia resvalou para uma azeda querela a dois, entre a Ana e o Eduardo, sobre os filhos que ele queria ter e ela não, pelo menos para já, sobre o estranho com quem ela almoçou, quem é ele, perguntou o Eduardo, um amigo, respondeu ela, isso já sei, mas que amigo, perguntou ele, um amigo de infância, respondeu ela, isso também já sei, mas tens almoçado mais vezes com ele, disse o Eduardo, isso é uma pergunta, perguntou a Ana, não, é uma afirmação, disse ele, andas a seguir-me, perguntou ela, foi por acaso, disse ele, passo com frequência na rua desse restaurante. Aprofundando a questão do amigo de infância, a Ana disse que o conhecera na serra, no caminho entre a casa e a escola, que nessa altura começaram a conversar e deixaram de ser estranhos, que ele a levava para casa dele. E me dava vinho, disse ela. A sala ficou em silêncio. O Eduardo saiu batendo a porta. Depois foi a vez do tímido Flávio e dos outros dois colegas, que saíram polidamente, mas só depois de acabarem as cervejas que tinham na mão e de terem dito duas ou três banalidades com o objectivo ingénuo e inábil de quebrar a incomodidade daquele silêncio tão espesso. O Calvo foi para a cozinha. A Ana e a Alexandra ficaram na sala, exactamente onde estavam e assim permaneceram, caladas, durante minutos. Era groselha, disse a Ana, o quê, perguntou a Alexandra, não era vinho, era groselha, disse a Ana, foi só para irritar o Eduardo que falei em vinho, o estúpido do Eduardo é uma pessoa interessante, mas é sufocante, e eu não quero viver como a minha mãe, sem conseguir respirar, incapaz de olhar para o horizonte sem começar a tremer. És, disse a Alexandra, a primeira na tua família a licenciar-se, a liberdade aumentou e a fábrica de criadas fechou, mas o caminho é longo, com os seus perigos e predadores, sempre com a ameaça de um regresso ao tempo em que éramos infelizes e não sabíamos — e muitos continuam a não saber. Ainda ontem sonhei que os mercados, em menos duma década, irão andar nervosos e isso será crítico. Nervosos, como?, perguntou a Ana, que estranho antropomorfismo. E o povo, continuou a Alexandra, será acusado de viver acima das suas possibilidades.

Os leitores são a força e a vida do jornal

O contributo do PÚBLICO para a vida democrática e cívica do país reside na força da relação que estabelece com os seus leitores.Para continuar a ler este artigo assine o PÚBLICO.Ligue - nos através do 808 200 095 ou envie-nos um email para assinaturas.online@publico.pt.