É tempo de correr atrás da democracia, antes que ela fuja

Quem votou Chega não quer voltar ao fascismo nem à ditadura, quando um estudante de medicina português cigano, como eu, seria uma realidade apenas em filmes de ficção científica. O que querem, então?

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Megafone P3 NUNO FERREIRA SANTOS
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No ano em que se celebram 50 anos de democracia, o povo usou-a para dar a maior vitória de sempre a um partido de extrema-direita fascista, com o nível de abstenção mais baixo desde 1995. A AD teve uma vitória modesta sobre o PS, subindo menos de 2% desde 2022, apesar do desgaste de oito anos de governação do PS e da coligação pré-eleitoral do PSD com o CDS-PP e o PPM.

No domingo, mais do que uma vitória do Chega, ironicamente no dia em que a democracia funcionou tão bem como não funcionava há 30 anos, houve sobretudo uma derrota dos partidos fundadores da nossa democracia.

Quem disser que mais de um milhão de portugueses se revê nos ideais fascistas, racistas, xenófobos, homofóbicos, misóginos ou antidemocratas que grande parte dos militantes do Chega orgulhosamente assumem, estará profundamente enganado.

Quem votou no Chega não quer voltar ao fascismo nem à ditadura, onde o direito a ser livre na escolha de quem nos lidera, livre no pensamento informado, livre no conhecimento adquirido, livre no trabalho ambicionado, livre no sonho de sermos o que quisermos, independentemente de quem formos à nascença, nos é tirado lentamente, sem nos darmos conta e mais rapidamente do que pensamos.

Quem votou no Chega não quer voltar ao período antes do 25 de Abril de Salazar que o partido tanto glorifica, quando uma em cada três mulheres eram analfabetas, e em que o seu propósito se confinava a servir o marido e a casa; quando mais de cinco milhões de portugueses nem tinha completado o Ensino Básico; quando a morte durante o parto da mãe ou do seu filho era uma realidade frequente por apenas os mais ricos acederem a cuidados de saúde de qualidade; quando um estudante de medicina português cigano, como eu, seria uma realidade apenas em filmes de ficção científica.

Eu, como tantas outras centenas de milhares de jovens e menos jovens portugueses, sou filho de Abril, sou filho do Estado Social, da Escola Pública, do nosso SNS. Assim, importa perguntar: o que querem o milhão de portugueses que elegeram 48 deputados deste partido com ideais facilmente contrariadas por quase todos nós?

A resposta é simples. Querem mudar as suas vidas para melhor. Querem ter um teto, sem se preocupar se vão colocar comida na mesa no final do mês. Querem trabalhar e sentir-se valorizados pelo contributo que dão a Portugal. Querem ter uma vida digna, sem serem obrigados a emigrar, afastando-se das suas famílias. Querem maior transparência das instituições e dos políticos. Querem ser felizes rodeados das pessoas que amam. Querem ser ouvidos. E o seu descontentamento já entoou pelos quatro cantos do país.

Agora, importa fazer reflexões. Para todos os que votaram no Chega importa refletirem: será que com o voto no Chega mudamos? Definitivamente. Mas a pergunta certa deveria ser: mudamos para melhor? Mudar para melhor é preferir o ódio ao amor? Preferir a expulsão ao acolhimento? Preferir a miséria dos mais fracos à sua emancipação? Preferir os problemas às soluções? Será isto mudar para melhor? Quanto aos principais partidos como o PS e o PSD, urge também a reflexão se não será tempo de inovar rapidamente a sua forma de ação e comunicação com todos os portugueses, de modo a reconquistarem a confiança de um povo tão nobre, caloroso, humilde e humano como o povo português. É tempo de correr atrás da democracia, antes que ela fuja.

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