Levar o abismo para casa

Passava cada vez mais tempo por lá do que por cá, é a sina dos mortos, vamos desaparecendo da memória dos vivos, até que um dia chegamos ao nada absoluto.

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Decidiu afastar-se daquela falésia, deu meia volta e caminhou até à vila, tomando depois um autocarro para a serra, mas não deixou o abismo da paisagem na paisagem, levou-o consigo para casa. Na verdade, andava sempre com ele, independentemente de por vezes haver uma materialização física dessa presença, como a vista daquela falésia. Sentou-se no sofá da sala depois de ligar a televisão, adormecendo de seguida. Acordou a meio da noite. Ficou uns minutos sem se mexer, a olhar para a estática do ecrã da televisão (a imagem perfeita do seu estado mental), antes de se levantar para a desligar. Arrastou os pés até à cama, descalçando-se pelo caminho. Havia meses que não ligava à filha, havia meses que a filha não lhe ligava, fazendo da sua relação uma assídua “presença da ausência”: ambas pensavam com frequência uma na outra, mas nenhuma tomava a iniciativa de interromper o vazio instalado, vazio que, de facto, servia de elo entre as duas, mantendo viva uma saudade tímida que ia persistindo, embora sem força para atravessar o espaço que as separava, nem emocionalmente nem fisicamente nem através de um simples telefonema.

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