Fabien Cousteau: a história dos oceanos “é uma história sobre nós próprios”

Neto de Jacques Cousteau, famoso explorador francês, veio a Lisboa falar sobre a importância dos oceanos: é preciso “viver numa relação simbiótica com o nosso sistema de suporte de vida”.

Foto
O aquanauta Fabien Cousteau Carrie Vonderhaar
Ouça este artigo
00:00
11:37

Exclusivo Gostaria de Ouvir? Assine já

Segundo contagens feitas, Fabien Cousteau já esteve ao todo, durante a sua vida, cerca de 25.000 horas debaixo de água. Este é o elemento onde se sente em casa, diz o aquanauta de 56 anos. O neto do famoso explorador dos oceanos Jacques Cousteau (1910-1997) continua o legado do avô na exploração do habitat mais desconhecido do planeta e em divulgar a sua importância, principalmente quando os oceanos estão submetidos a tantas ameaças, desde a poluição até às alterações climáticas.

"Fico enfurecido que não vejamos isto. Também me surpreende o facto de não darmos ênfase ao impacto que estamos a ter nas nossas próprias vidas. Porque o que quer que estejamos a fazer ao oceano, estamos a fazer a nós próprios", disse o mergulhador ao PÚBLICO, durante a 11.ª Cimeira Mundial dos Oceanos, uma conferência anual de três dias organizada pela Economist Impact uma marca do grupo que detém a revista inglesa The Economist , que este ano decorre em Lisboa e terminou nesta quarta-feira.

Durante a conferência, houve painéis sobre as reservas marinhas, a poluição causada pelo plástico, a importância da inteligência artificial para estudar os oceanos, a economia azul, entre tantos outros. Fabien Cousteau veio dar o seu brilho enquanto explorador, divulgador de ciência e herdeiro de Jacques Cousteau. "Para mim, isto é vida, motivação, paixão", diz-nos. É com esta energia que quer infundir em todos os que o ouvem a vontade de conhecer, amar e proteger os oceanos.

Como é estar dentro do oceano?
É como estar em casa para mim. Tenho uma perspectiva muito enviesada porque sou a terceira geração de exploradores oceânicos. Para mim, que cresci com o oceano, ele foi a minha sala de aulas, o meu recreio. Mudei de casa 36 vezes durante a minha vida e o lugar onde sou mais feliz é debaixo de água. Há uma certa sensação de serenidade, de mistério, que desperta a curiosidade. Todos os dias em que acordo e vou para dentro de água é uma nova telenovela com diferentes personagens. É sempre um mistério intrigante, porque é um ambiente alienígena.

Ao viver em expedições desde que tinha sete anos, o mundo como um todo era uma fonte de curiosidade, era a sala de aulas. Ir à Amazónia, ir à Papuásia-Nova Guiné, ir ao Árctico abriu-me os olhos para a beleza, a grandeza e a fragilidade dos ecossistemas, que são o nosso suporte de vida. Vi tanto o bom como o mau, vi quão incrível é o suporte à vida que este planeta dá e também a facilidade com que podemos desequilibrá-lo com a nossa ignorância, com as nossas acções egoístas.

De que forma é que essa experiência foi importante para si?
Vi coisas que a maioria das pessoas não viu. Desde encontrar três metros de lixo empilhado em zonas costeiras a 3000 quilómetros de qualquer ser humano, ver centenas de criaturas mortas a 50 metros de profundidade, encontrar belos recifes de coral com sacos de plástico enrolados, derrames petrolíferos que causam uma mortalidade a grande escala. Fico enfurecido que não vejamos isto. Também me surpreende o facto de não darmos ênfase ao impacto que estamos a ter nas nossas próprias vidas. Porque o que quer que estejamos a fazer ao oceano, estamos a fazer a nós próprios.

Não há pessoa que não nasça hoje, que não tenha no sistema pelo menos 150 químicos diferentes produzidos pelo homem. Isto não era assim há 50 ou 60 anos, e claro que andamos a falar de microplásticos, que são disruptores endócrinos, que é alarmante. Mas não andamos a falar de retardadores de chamas, que estão nas cortinas, nas carpetes, nas nossas casas, que respiramos todos os dias. Se pensarmos nisso, percebemos que é insano.

Foto
Fabien Cousteau já passou 25.000 horas debaixo de água DR

O que estamos a assistir nos oceanos, como eco, como reflexo de nós próprios, são distúrbios físicos e comportamentais em animais de topo como as orcas e as baleias. Vemos abortos espontâneos, gravidezes inviáveis. Vemos padrões migratórios nos mares que estão a romper com os sistemas económicos em terra, com o bem-estar dos povos piscatórios. Estamos a ver a imprevisibilidade de tempestades que estão a afectar as comunidades costeiras, com centenas, se não milhares de vidas ameaçadas.

Isto está a ter um custo maior do que conseguimos imaginar. E não só ao nível da comunidade global, mas também ao nível local, familiar. Quem se preocupa consigo, com os seus filhos, com a sua comunidade, então também tem de se preocupar com o oceano, é um conservacionista por definição. Porque se o oceano for saudável, se o nosso ambiente for saudável, então nós também somos saudáveis. Isso significa viver numa relação simbiótica com ele e com os seres sencientes que partilham este espaço connosco. Se continuarmos neste caminho, estamos a garantir a nossa própria destruição enquanto espécie.

Durante o seu tempo de vida, viu diferenças nos ecossistemas marinhos?
Sem dúvida. Quando era criança, em Florida Keys (o mesmo vale para o mar Mediterrânico), era um paraíso. Para onde quer que olhássemos era fantástico: corais por todo o lado, peixes, vida marinha. Hoje, volto lá e é um deserto. Não resta nada. Agora, um novo mergulhador naquela área pode encontrar alguns animais, corais moles, esponjas. Isto não é nada, é apenas o esqueleto do que era.

É o problema da falta de memória.
Chama-se síndrome de amnésia ambiental. A percepção da realidade baseada na experiência que se tem hoje é muito diferente da referência que se deve ter [da abundância ecológica que existia no passado]. O mesmo para mim. Aquilo que eu vi quando era criança era muito diferente do que o meu avô viu nos seus primeiros mergulhos.

Ele disse-lhe isso?
Sim, recordo-me claramente de o meu avô dizer ao meu pai e de o meu pai dizer-me a mim: “Quem me dera trazer-te aos locais que vi, mas não posso porque eles já não existem.” Isto é uma história que se repete. Digo o mesmo à minha filha de 12 anos.

Para muita gente, o oceano está distante, embora as suas acções tenham um impacto no oceano. Como aproximar estas pessoas dos oceanos?
É um problema muito difícil. Como humanos, as nossas emoções motivam-nos e a nossa lógica guia-nos. Quando falamos de ciência, de informação, de urgência, isto não é motivante. É muito analítico.

E pode ser deprimente.
Poderia falar sobre coisas deprimentes durante o dia todo e nunca iria conseguir motivar alguém. Mas as histórias estão a ser contadas nas nossas sociedades desde os tempos das cavernas. Essas histórias são ferramentas de aprendizagem, levam-nos a uma viagem emocional que nos educa de uma forma que nos inspira para a vida. Em vez de se falar de factos científicos, fala-se da viagem, da experiência, do valor, da maravilha, da esperança. E, ao fazê-lo, podemos fazer entrar a ciência pela porta das traseiras, para as pessoas que podem não estar interessadas em ciência, mas estão interessadas no que está por baixo da película azul. Porque é que o polvo é tão importante? Porque devo preocupar-me com uma orca bebé a meio mundo de distância?

E porquê?
Porque é uma história sobre nós próprios. A história da orca somos nós, a história da inteligência do polvo é sobre criaturas alienígenas. Sou um grande defensor da exploração espacial, mas garanto-vos que o nosso tempo é mais bem empregue na procura de extraterrestres no fundo do mar. Eles estão em todo o lado. Um polvo é um exemplo perfeito de inteligência suave. E porquê orcas? As coisas que comem são as mesmas coisas que comemos, as coisas que fazem são os mesmos tipos de coisas sociais que fazemos em comunidade. Provavelmente, são tão inteligentes como nós, mas de uma forma muito diferente, porque estão adaptadas ao seu mundo. Se olharmos para o planeta como um espaço vivo, 99% está abaixo da superfície do oceano. Então, porque é que não havemos de querer saber mais? E porque não quereríamos estar mais atentos ao pulso da saúde oceânica, para podermos calcular a nossa trajectória e tomar decisões a longo prazo que sejam benéficas para a nossa sobrevivência e o nosso bem-estar?

Mudando de assunto, gostava que me falasse sobre o seu novo projecto Proteus.
Proteus é o equivalente à Estação Espacial Internacional no oceano. Imagine a Estação Espacial Internacional debaixo de água, escolhendo um local muito privilegiado e bonito, onde podemos convidar pessoas a tornarem-se aquanautas. E onde podemos fazer alguma da investigação mais avançada em bioquímica, em biologia marinha, em aspectos técnicos, incluindo engenharia, a melhor e a mais recente robótica num ambiente extremo. Se conseguirem sobreviver a esse tipo de agressão do ecossistema subaquático, então poderemos utilizar essa tecnologia na nossa vida quotidiana. Vejo isto como uma interface tecnológica humana na última fronteira do nosso planeta.

É uma estação móvel?
Não, vai ser estacionária. Imagine um número de colónias estrategicamente colocadas em diferentes partes do mundo.

Com pessoas a viverem lá?
Sim, com um sistema rotativo, dependente das necessidades de cada missão. Tal como na estação espacial os astronautas vão sendo substituídos.

Isso é para quando?
Em 2027, vai ser instalado o primeiro módulo em Curaçau, nas Caraíbas. Em Curaçau está um dos últimos recifes de coral das Caraíbas. Por isso, é um local muito interessante para analisar o que está a acontecer ao ecossistema submarino. Especialmente num ambiente em mudança como o das Caraíbas.

A que profundidade irá ficar?
A cerca de 20 metros, onde o mergulho recreativo termina e começa o mergulho feito por aquanautas. Pode-se ir até 50 metros de profundidade por mais de duas horas e meia. Os pedidos que recebemos para executar missões por parte de clientes têm sido avassaladores, sendo alguns deles da Marinha dos Estados Unidos. Agora, a Administração Atmosférica e Oceânica dos Estados Unidos (NOAA, sigla em inglês) quer alguns dos dados. E temos empresas privadas e universidades que gostariam de poder utilizar esta plataforma para a sua própria investigação. Os fluxos de dados gerais serão gratuitos ao público, a recolha de dados específicos dos clientes será propriedade destes.

Para si, qual o legado do seu avô, Jacques Cousteau? E de que forma carrega essa legacia?
Essa é uma questão muito pessoal. Penso que a melhor forma de a resumir é algo que ele estava sempre a dizer: "As pessoas protegem aquilo que amam, amam o que compreendem e compreendem o que lhes é ensinado." Para mim, isto é vida, motivação, paixão. Essa é a chave para desbloquear a estabilidade financeira, a estabilidade política, a estabilidade cultural [do mundo], e sermos capazes de viver numa relação simbiótica com o nosso sistema de suporte de vida. Sem isso, haverá sempre lutas, caos e problemas. Temos a consciência destes factos, temos a inteligência para ver o que está por vir. Mas será que temos a sabedoria?

Teve sorte, cresceu visitando lugares, conhecendo pessoas e contactando com diferentes ecossistemas. Hoje em dia, parece que as pessoas estão mais afastadas da realidade do mundo, imersas nos seus telemóveis. Desse modo, como é que vão acarinhar e proteger o planeta?
Encorajo vivamente todos os que puderem, a fazerem uma viagem ao sítio mais desconfortável que possam imaginar. Por mais assustador que possa parecer, aprende-se muito sobre o resto do mundo. Isso dá-nos apreço por muitas coisas e aceitação de diferentes culturas, modos de viver e sensibilidades. E essa aceitação faz parte da viagem que é tão importante para tomarmos decisões correctas para o nosso próprio bem-estar.

Isso exige coragem…
Coragem emocional e intelectual, não é preciso coragem física. Essa viagem pode ser feita ao país vizinho ou a meio mundo de distância. Pode ser feita debaixo de água. Pode-se aprender algo estrangeiro, seja uma língua e uma cultura, sejam as lutas de vida e morte de um peixe-porco. Enriquece a nossa vida e dá-lhe sentido. Dá uma resposta parcial à questão sobre o porquê da nossa existência.