Um balneário no Beato para tomar banho, lavar roupa, ficar bonita: “Se acabar, o bairro rebenta”
Na Picheleira, Olaias, há um salão de estética, lavandaria e balneário aberto a todos. É lá que se encontram moradores e pessoas em situação de sem abrigo, unidos por um lugar que já foi de “pobreza”.
À Associação de Moradores Viver Melhor no Beato, em Lisboa, chegam mulheres com bacias cheias de roupa. No edifício onde funciona a associação, no bairro da Picheleira, nas Olaias, a nova lavandaria comunitária já funciona a todo o gás. Mas à vez, que é tudo bem combinado: “Um dia vai uma e outro dia vai outra”, conta Rosa Teixeira, que não consegue arcar com os custos de lavar a roupa em casa.
“São duas horas a gastar água” e, “com as pensões que recebemos, é impossível pagar tudo isso, mais a comida e a electricidade”, acrescenta Maria (nome fictício), a amiga, que não quer ser identificada. Conta ao P3 que recebeu uma casa com o chuveiro estragado: "Se não fosse isto, onde é que íamos tomar banho e lavar roupa?"
Nesta segunda-feira de Março, as duas utilizam os dois chuveiros e a máquina de lavar e de secar da associação, com a ajuda das funcionárias: “Qualquer coisa, a gente grita alto e elas vêm ajudar.” Foi também com esta finalidade que este equipamento foi criado: as pessoas idosas ou com mobilidade reduzida podem usá-lo para se sentirem mais seguras. Como resumem as duas, porque têm "medo de cair no chuveiro".
O espaço da associação está dividido como se fosse uma casa: quando se entra pela porta principal, o primeiro espaço que se abre à nossa frente é o da sala comum. É lá que encontramos Rosa e Maria, a ver televisão. Aproveitam para matar dois coelhos de uma cajadada só: deixam a roupa a lavar, enquanto esperam o seu turno para tratar do cabelo.
A lavandaria dista apenas alguns passos do cabeleireiro. O que as trouxe aqui não foi a roupa por lavar, foram os novos ferros de cabelo, bisnagas coloridas e secadores — o novo salão improvisado.
O cabeleireiro gratuito divide espaço com os chuveiros do balneário. É composto por uma mesa de escola e algumas tintas de supermercado. E pelo dedo de Cátia Grove, que também mora no bairro da Picheleira. É ela que faz magia com o que tem. Frequentou um curso de estética e conhece os cabelos das utilizadoras como ninguém. Trabalha na associação há quatro anos, altura em que “surgiu a oportunidade” de quatro das voluntárias passarem a ser pagas.
Cátia sabe que o cabelo de Lígia Silva, 84 anos, precisa de mais calor para se manter ondulado, ou que, no caso de Maria, deve deixar menos tempo a tinta, senão fica ruiva. “O cabeleireiro funciona às sextas, elas marcam entre si os dias em que cada uma vem”, conta Cátia. Desta vez, abriram excepcionalmente à segunda-feira. “Já está bom assim!”, diz Lígia. Mas Cátia é perfeccionista, e sabe que não está nada bom: “Deixamos mais um bocadinho.”
Lígia Silva mora no Beato há muito tempo, sozinha, porque o marido está num lar. Para ter companhia, vai à associação ver televisão e participa nos passeios e actividades. Também a amiga, Rosa Teixeira, gosta da familiaridade que aqui sente: “Chego e perguntam-me logo se quero um café.”
"Abrimos esta porta num bairro em isolamento"
São cinco dias por semana de serviços, que vão desde ginástica ou aulas de natação na Penha da França ao gabinete de apoio ao morador, todos eles gratuitos, financiados pela Junta de Freguesia do Beato e, agora, com uma pequena ajuda da campanha do Pingo Doce, que doou mil euros ao projecto vencedor do concurso Bairro Feliz.
“Muitas vezes, somos nós que temos de resolver os problemas dos moradores”, diz Amandine Bouillet, coordenadora da associação — como os buracos nas estradas, desratização ou o corte de relva. Chegada de França em plena pandemia, Amandine já trazia experiência na coordenação de projectos semelhantes. Apaixonou-se pelo Beato e pelo projecto da Associação de Moradores. Decidiu ficar.
A maior parte dos frequentadores são idosos. Alguns deles “vivem sozinhos no sétimo andar sem elevador, não conseguem sair de casa” e têm de ter ajuda. É aqui que entra a associação.
Também é por isso que muitas vezes toca o telefone do escritório: é do hospital, para agendar consultas, que têm de ser comunicadas a quem deu o número. Há muita proximidade entre as funcionárias e os frequentadores do espaço. Na sala comum, há um calendário com os aniversários de todos e jogos de tabuleiro para quem quiser. Ao fundo do corredor, uma salinha com cozinha, para o caso de “faltar o gás em alguma casa”, e uma lavandaria com máquina de secar e lavar.
“Nós temos aqui os detergentes, mas as senhoras costumam preferir utilizar os seus, gostam do seu próprio cheiro”, conta Filipa Valente, que, com Cátia Grove e Catarina Passos, ajudam a pôr a roupa na máquina e a iniciar os programas. Catarina é animadora sociocultural, tarefa que acumula com a condução da carrinha. “As pessoas nem imaginavam que havia gente neste bairro com este curso [de Animação Sociocultural] e que podiam ajudar aqui dentro”, diz Amandine.
Não é fácil, diz a coordenadora, manter o projecto vivo. Normalmente, candidata-se ao programa BIB/ZIP da Câmara Municipal de Lisboa, que apoia iniciativas locais, mas é difícil custear os apoios, porque para voltar a receber financiamento é necessário criar uma ideia diferente e manter a anterior durante, pelo menos, dois anos de forma auto-suficiente. Nas redes sociais da associação, procura ajuda externa: “Esquecem-se de que temos de pagar coisas como café, papel higiénico, vários produtos.”
O que a motiva é a ligação com as cerca de 350 pessoas inscritas — mais de 70 crianças —, mais as que só aparecem uma vez, como é frequente no caso de algumas pessoas sem abrigo, que aqui se dirigem para lavar a roupa e tomar um banho.
O Beato é um dos bairros mais antigos de Lisboa — e, quando Amandine chegou, batia-se contra o problema da toxicodependência. “Agora, esse problema foi mais para bairros sociais vizinhos, como a Bela Vista”, descreve. Ainda assim, a coordenadora da associação, criada em 2011 “para legalizar cooperativas” que já existiam no bairro e com o espaço físico inaugurado na altura da covid-19, em 2020, lembra-se de ver “seringas espalhadas pelo chão”. A droga acompanhava o dia-a-dia de “pobreza”, visível ainda em muitos prédios, antigos e sem porta, com azulejos caídos e paredes com humidade.
Recorda os primeiros tempos: “Abrimos esta porta que é a associação num bairro que estava numa situação de isolamento. No dia em que perdermos o financiamento para os projectos e isto acabar, este bairro rebenta.”
Texto editado por Inês Chaíça